sábado, 3 de março de 2012

Daisy


Belo filme fúnebre. Como Morte em Veneza, Cronaca familiare, Tristana, Restless ( Van Sant), nasce ( como aqui) ou morre ( como nos outros) numa seqüência de planos que inventariam espaços vazios ( o hotel), por onde uma presença deixou um rastro... é a radicalização do plano fúnebre empreinte (pegada) de Bazin: o plano como um monumento fúnebre à presença que se esvaiu, arrebatada pela temporalidade da sequência... Em toda sequência, aliás, temos um personagem ( o castelo incluso) se despedindo, visado e abandonado pelo contracampo de um Outro que se despede... os espelhos nos bailes, o aquilino olhar da hostess invejosa, o cocheiro que contempla a partida do casal, o guia que os introduz ao castelo... Bogdanovitvh centra a câmera no olhar “do que fica”: ruse cognitiva e fenomenológica. Se a princípio temos a idealização do rosto de Daisy ( campo versus contracampo em eixos enviesados, opondo o perfil de Miller à frontalidade bovina do seu observador), esta fixação da presença erótica num cadre ideal e subjetivo se dissemina por todo o filme, pervertendo-o em um doloroso good bye ao cinema clássico, cinema que se empenhou em eternizar presenças- frontais e fatais, Fatale Beauté. A despedida de Daisy- na carruagem, quando seu close primaveril se ulcera numa drástica borrasca de plano geral, que já antecipa a morte iminente- é o contraponto-rima à visita ao castelo ( Ela pediu que você se lembrasse do castelo!). O próximo se torna distante, a experiência In memoriam... E o arrebatado travelling traseiro final sobre o dandy tumefacto de variola pectoris também o transforma em um fantasma- uma “imagem”, cromo ideal à distância-, à imagem e semelhança do que do que seu olhar predatório impusera a Daisy ( ressentimento audaz da criança no enterro, ao olhar para o homem)... Outro dia estava revendo um precioso bônus da Criterion em Vivre sa vie: Jean Narboni citava O retrato oval de Poe como fonte inspiradora do filme de Godard. A rigor, o récit de Poe é um destes tantos “estudos de caso” decadentistas que linkam a Morte à representação, a Imagem à aniquilação ( Dorian Gray, À rebours...). No conto, um pintor se esmera em retratar sua amada da forma mais escrupulosa possível; e tanto se esforça em sua tara mimético-idealista que acaba por matá-la; na pincelada final, a mulher está morta...mesmo caso aqui: Daisy é transformada numa “imago” pelo contracampo do olhar enamorado; o filme segue o mesmo mortífero percurso... a idolatria cobra um eterno e abissal preço. Ainda hoje. O conto “travesti” crônica de costumes de Henry James se revela um outro gamão entre fantasmas.

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