sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Benilde e a Verdade que não se mostra




Quando Pilatos interroga a Cristo sobre o “testemunho da Verdade”, ouve a única resposta que a Verdade Mysterium tremendum de Cristo pode dar: o silêncio. Pilatos não estava “do mesmo lado, ethos, Nomos”de Cristo; portanto, jamais poderia ver a sua Verdade, fixado como estava em uma concepção civil e política da aletheia. Benilde, como a  Gertrud de Dreyer, Giordano Bruno, o Ivã Karamazov de Dostoiévski estão do lado de Cristo, e como ele não podem comunicar aos outros a sua Verdade porque habitam dimensões irredutivelmente distintas: quando Benilde entra em cena, Oliveira atesta a “sua verdade que não é deste mundo” por esta estrepitosa música dodecafônica de parada. Em um filme como Benilde, não está dada a possibilidade de dialogismo, justamente pelo motivo destacado acima: para que o Mesmo alcance o Outro, é preciso que tenha um pouco deste Outro dentro de si; (Lichtenberg: Se um macaco olhar ao espelho, jamais verá um monge.) Assim, ninguém está exatamente do mesmo lado de Benilde; apesar da bonomia caritativa da criada, da sapiencial discrição do padre e  do noivo bem-intencionado, jamais chegarão lá. Quando Benilde nos aborda nestes planos frontalíssimos de inquisitivos onde, custe o que custar, o cinema há de atestar a verdade de cada ser, é com os olhos estrábicos de tão ensandecidos pela sua inabordável Verdade: estes olhos foram feitos para o fora de quadro da câmera ou o fora de campo da Significação, nunca para encarar um outro ser humano. O décalage supremo entre os personagens se exprime no découpage como sequência de monólogos; e a impossibilidade de chegar ao diálogo- Mesmo como parte do Outro e vice-versa- ainda se assevera por esta câmera judiciosamente atenciosa à escuta dos personagens; a partir do segundo ato ( quando Benilde está propriamente sendo julgada em sociedade, pelas diversas funções e valores mobilizados naquela comunidade), Oliveira nos mostra sua versão do Gestus brechtiano -mostrar o ato de mostrar-, ao designar “o ator escutando”: este jamais interage diretamente com o Outro porque, como disse, a transcendência do Desejo do Desejo de Benilde já condenou a todos à recíproca incomunicabilidade, ao No trespassing do limiar. Talvez este seja, com a obra de Edward Yang, o filme mais rigoroso jamais feito sobre a incomunicabilidade, tema tão retoricamente desvitalizado pelas vagues dos anos 60.


Uma última coisa: há um padre francês que, entre o túmulo vazio de são Marcos e o Te deum de São João, acha espaço para um panegírico da virgindade mariana: “(...) a virgindade é um dogma essencial, pois designa precisamente uma intercessão divina sobre o curso da Natureza, um engendramento do ser não pela Natura, mas pela palavra”. A palavra em Benilde, seguindo à la lettre esta fórmula, é o texto de José Régio, e  Benilde é o fruto desta conjunção entre o idealismo temático de Oliveira e seu modernismo cinematográfico- aqui, particularmente materialista, ao nos indicar de forma demonstrativa os “meios” de que o cinema se serve para canibalizar o teatro, no princípio e no fim do filme. Para que serve o teatro, neste filme que, à força de respeitar as rubricas da cena, no entanto e em um mesmo movimento o submete de força à semântica do cinema? o teatro ( e teatro é, basicamente, texto, dicção, gesto) é o révelateur do cinema, o meio que industriosamente vai desencadear a manifestação de seus sortilégios; assim como a virgindade mariana é o révelateur da mão de Deus, que neste gesto escandalosamente teatral rescinde os contratos de sua criação primeira ( a Natura) e instaura os direitos do artifício da representação, da sua arte: a palavra. 

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