domingo, 5 de dezembro de 2010

Manila, nas garras de néon, Brocka


“- Mas enfim, por que você vai ao cinema?

- Sei lá! Ou melhor, eu acho que sei sim: eu vou ao cinema para ver este mundo e este tempo que contemplaram nossa infância.

- Isto é tudo?

- Não! Quem jamais disse que o começo do mundo equivalia à totalidade do mundo?”

Jean-Louis Schefer, L’homme ordinaire du cinéma


“(...) a imagem da felicidade é inseparável da imagem da redenção. A mesma coisa se aplica à imagem do passado, de que se ocupa a História. O passado é marcado por um índice secreto, que o remete à redenção. Não ouvimos em nós mesmos o frágil sopro de ar, com o qual viviam os homens de ontem? As vozes às quais escutamos não nos trazem um eco de vozes agora extintas? (...) Se é assim, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações passadas e a nossa. Esperavam por nós na terra. “


Walter Benjamin, Sobre o conceito de História.


A abertura de Manila constitui uma cartografia fantasmagórica: fachadas e becos de uma cidade que desperta, ainda envolta nas trevas da noite, entulhada pelos destroços da miséria. Um burgo decadente de comércio predatório que a câmera percorre com o olho mecânico e casual de um autopsista que lança uma vista geral sobre o mapa do corpo antes de se fixar sobre o flanco a ser suturado: um jovem rapaz, em um plano médio frontal, chama a atenção do olho vigilante; e basta a câmera deter-se com atenção, basta apercebermo-nos, através do foco diretivo da câmera, que ele está presente para que o filme nasça, que as cores aflorem, e com elas a ficção: o imaginário de um porvir, um conto por desabrochar; de um documentário monocromático sobre uma cidade depredada entramos no mundo turvo e espectral do melodrama. É ao fantasma que habita este jovem operário que o filme vai dedicar sua transparência epifânica, a suspensão do espaço aterrador da cidade numa clareira de quietude e langor, a reserva de onirismo e utopia que o filme de Brocka vai identificar com a infância, a terra natal e sobretudo com o passado: Ligaya Paraíso, a namorada prostituída que Julio, tal como Orfeu, vai buscar no limbo do Hades.


A montagem abrupta e acidentada de Manila se assemelha, em seus propósitos de apresentar a experiência perceptiva da Cidade como uma arena de trauma e expiação, ao “rough cut” paranóico da recriação de M, dirigida por Losey; porém, ao contrário do rato acossado, maníaco-depressivo do filme de Losey, fixado definitivamente nas malhas de um labirinto cujo dead line o espreita desde o primeiro plano, Julio encontra no filme de Brocka um lugar para o seu passado soterrado: através do uso de flashbacks, da câmera lenta, do fade in em certas seqüências, temos acesso a uma espécie de memorial afetivo do personagem, um pathos que resiste ao naufrágio de tudo o que o circunda. Se a sequência final de Manila é uma das mais sombriamente agônicas da história do cinema- com sua saraivada de campos e contracampos num crescendo de terror en sursis e apocalipse eletrodinâmico que em nada deixa a dever ao apogeu do cinema do corpo em Siegel ou Fulci- é porque assinala a intersecção de dois momentos; primeiro, a entrada do melodrama no domínio do trágico- com a decisão final de Julio, que o perde e o salva em um único movimento- pois, como bem nos ensina Jean Pierre Vernant, “a tragédia apresenta o homem na situação de agir, face a uma decisão que implica todo o seu destino; ele vai escolher o que lhe parece melhor, mas ao fazer esta escolha ele estará necessariamente destruindo a si mesmo, pois seu ato- seu pequeno ato- vai adquirir um sentido totalmente diferente do que ele havia imaginado e voltará contra ele num efeito boomerang.. Este homem, que acreditava fazer o bem, vai aparecer aos olhos dos outros como um monstro ou um criminoso. Há uma ilusão em se acreditar que o homem é senhor dos seus atos, diz-nos o trágico.”


Assim, se na maior parte do filme Julio recorda e espera , a partir do instante em que reencontra Lygaia ele é obrigado a agir. O limbo amniótico do devaneio melodramático é substituído pelo presente absoluto da ação trágica: a intensidade naturalista do clímax final mostra-nos a urgência deste apelo, e que Julio aprendeu as regras do jogo predatório de Manila, e se serve ativamente dele; agora encarna outro papel: de cordeiro sacrificado transforma-se em herói de seu destino, ou anjo vingador. Figuras apocalípticas e/ou redentoras, experiência dos limites e limites da experiência, o ato final e transcendente: dadas todas as cartadas num único e certeiro golpe, resta ao apostador o espetáculo de sua própria imolação.


Mas há um segundo momento, como disse acima. É este que permite a Julio e Lygaia uma derradeira chance, a de inscreverem-se miticamente no espaço do filme, não como mero bedéis de um Destino selvagem ou lances de uma partida determinista como é o caso do M de Losey, aliás. No limiar deste instante de Consumação, temos a visão de uma Fatale Beauté, ou de uma Fata Morgana, miragem da hora da Morte ou Plenitude do Ocaso como Reencontro com as Origens: um close de Lygaia, não por acaso introduzido por um fade in superposto ao rosto aterrorizado de Julio. Sacrifício e Redenção, Fim e Princípio, o círculo trágico da reconciliação. O plano que encerra o filme e nos deixa ancorados no território, acessível apenas às crianças e aos contos de fadas, do presente Eterno, ou da presença que se incrusta no presente de uma imagem icônica, e assim adquire o direito à Eternidade. Jean Louis Schefer faz uma observação significativa: “(...) Assim, a duração das paixões ( o que Kierkegaard chamava o caráter de um homem alternativo) pode apenas ser mensurada pelos vestígios das imagens – não em sua duração cinematográfica, mas pelo poder de que estão investidas em permanecer, repetir-se ou recorrerem. Este caráter é muito próximo do que define a transformação da imagem em um duplo mimético- ou seja, naquela espécie de traço ou garantia de registro que é intrínseco ao movimento de desaparecimento ou de desvanecimento do fenômeno”.


A morte de Julio libera a imagem-fantasma de sua namorada, até então prisioneira de sua experiência subjetiva, e como ela sujeita aos esbarrões e desníveis de um itinerário que, em sua progressão em direção à realização ( o encontro com a mulher), encontra infalivelmente o caminho da Queda. O platonismo de Brocka exige o sacrifício do casal para que estes possam ser eternizados no domínio puramente virtual e idealista das imagens, refúgio da infância. Só assim poder-se-ia realizar o mito romântico de que Kierkegaard detém a formula célebre: “(...) sendo o homem consciência, é portanto o lugar onde o tempo e a eternidade se encontram perpetuamente em contato, onde o eterno irrompe no temporal”. É na porosidade da imagem-efígie de Ligaya Paraíso que estas duas dimensões se esposam e fecundam mutuamente ( ou se canibalizam) : uma pátina de Eterno à decadência, um corpo- e seu arsenal de gestos e retrações- à Eternidade.


O fetichismo da imagem inefável e do mundo edênico que esta pressupõe em Brocka só é possível a partir de um aprofundamento radical da imanência: corrupção, prostituição, balé de Eros e Thanatos. A cidade é o demiurgo desta estratégia irônica - tragicamente irônica, ironicamente trágica- que consiste em vislumbrar a redenção apenas sob o prisma da danação. Insiang, Tinimbang, Makliusap ( um filme curioso, com um argumento muito semelhante à Marquesa d’O de Rohmer/Kleist), Cain e Abel... muitos filmes de Brocka descrevem Paixões de uma mitologia romântica e cristã que aspira à conciliação de uma impossível unidade: a família e o Eros individual, a Inocência e a Corrupção, o Campo e a Cidade, as Origens e o Devir. Manila é provavelmente sua obra-prima por operar no interior destas oposições um deslocamento sutil mas decisivo: o trágico não é apenas o princípio arquetípico do aniquilamento do indivíduo, obstáculo à reconciliação cósmica; em sua contemplação se inscreve também uma imagem que, diferida pelo horizonte da rememoração, é a fonte eterna(finita)mente renovável de fascinação elegíaca.


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