Quando Pilatos interroga a Cristo
sobre o “testemunho da Verdade”, ouve a única resposta que a Verdade Mysterium
tremendum de Cristo pode dar: o silêncio. Pilatos não estava “do mesmo lado, ethos,
Nomos”de Cristo; portanto, jamais poderia ver a sua Verdade, fixado como estava
em uma concepção civil e política da aletheia.
Benilde, como a Gertrud de Dreyer,
Giordano Bruno, o Ivã Karamazov de Dostoiévski estão do lado de Cristo, e como
ele não podem comunicar aos outros a sua Verdade porque habitam dimensões
irredutivelmente distintas: quando Benilde entra em cena, Oliveira atesta a “sua
verdade que não é deste mundo” por esta estrepitosa música dodecafônica de
parada. Em um filme como Benilde, não está dada a possibilidade de dialogismo,
justamente pelo motivo destacado acima: para que o Mesmo alcance o Outro, é
preciso que tenha um pouco deste Outro dentro de si; (Lichtenberg: Se um macaco
olhar ao espelho, jamais verá um monge.) Assim, ninguém está exatamente do
mesmo lado de Benilde; apesar da bonomia caritativa da criada, da sapiencial
discrição do padre e do noivo
bem-intencionado, jamais chegarão lá. Quando Benilde nos aborda nestes planos
frontalíssimos de inquisitivos onde, custe o que custar, o cinema há de atestar
a verdade de cada ser, é com os olhos estrábicos de tão ensandecidos pela sua
inabordável Verdade: estes olhos foram feitos para o fora de quadro da câmera
ou o fora de campo da Significação, nunca para encarar um outro ser humano. O décalage supremo entre os personagens se
exprime no découpage como sequência de monólogos; e a impossibilidade de chegar
ao diálogo- Mesmo como parte do Outro e vice-versa- ainda se assevera por esta câmera
judiciosamente atenciosa à escuta dos personagens; a partir do segundo ato (
quando Benilde está propriamente sendo julgada em sociedade, pelas diversas
funções e valores mobilizados naquela comunidade), Oliveira nos mostra sua
versão do Gestus brechtiano -mostrar o ato de mostrar-, ao designar “o ator
escutando”: este jamais interage diretamente com o Outro porque, como disse, a
transcendência do Desejo do Desejo de Benilde já condenou a todos à recíproca
incomunicabilidade, ao No trespassing do limiar. Talvez este seja, com a obra
de Edward Yang, o filme mais rigoroso jamais feito sobre a incomunicabilidade, tema
tão retoricamente desvitalizado pelas vagues
dos anos 60.
Uma última coisa: há um padre
francês que, entre o túmulo vazio de são Marcos e o Te deum de São João, acha
espaço para um panegírico da virgindade mariana: “(...) a virgindade é um dogma
essencial, pois designa precisamente uma intercessão divina sobre o curso da
Natureza, um engendramento do ser não pela Natura, mas pela palavra”. A palavra
em Benilde, seguindo à la lettre esta
fórmula, é o texto de José Régio, e
Benilde é o fruto desta conjunção entre o idealismo temático de Oliveira
e seu modernismo cinematográfico- aqui, particularmente materialista, ao nos
indicar de forma demonstrativa os “meios” de que o cinema se serve para
canibalizar o teatro, no princípio e no fim do filme. Para que serve o teatro,
neste filme que, à força de respeitar as rubricas da cena, no entanto e em um mesmo
movimento o submete de força à semântica do cinema? o teatro ( e teatro é,
basicamente, texto, dicção, gesto) é o révelateur
do cinema, o meio que industriosamente vai desencadear a manifestação de seus
sortilégios; assim como a virgindade mariana é o révelateur da mão de Deus, que neste gesto escandalosamente teatral
rescinde os contratos de sua criação primeira ( a Natura) e instaura os
direitos do artifício da representação, da sua arte: a palavra.