quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Da paranóia e da féerie


Lacan dizia do paranóico: Il ramène tout à lui. O mundo é um pré-texto para sua glosa; estridente, ziguezagueante, auto-comiserativa. Teatro, teatro e ainda teatro; na coxia do ser, mas teatro. Rivette usa a paranóia como um expediente particularmente exuberante para suscitar o merry-go-round das narrativas, seu feérico chassé-croisé ( hoje acordei mais francófono que de hábito; passará). Como? O paranóico é um Éden para a invenção de ficções. Afinal, “il ramène tout à lui”. Se um avião explode em Teerã, ele vai ter de dar um jeito de ligar aquele apocalipse histórico-político ao seu, copa e cozinha. More em Bagdá, Perdizes ou no Ibura. Ele terá de necessariamente inventar uma historinha para explicar porque aquele avião- destinado ab ovo e ad eternum a explodir no meu quintal- mudou de rota ( ou foi a Terra que encurvou?) e foi parar em Teerã. Qualquer ponto da Terra ou duração no Tempo deve necessariamente marcar um encontro com seus demônios, e dar em Sabath.

A herança é languiana, claro. Mas Rivevte é um modernista, um filhinho do papai sem papai ( nem túmulo). Sem origem, nem fim; obra aberta, chamam; segue à risca a lição da vovó Daney: “Uma tela é tudo, menos uma janela para o mundo; ela é cu, hímen, todo buraco por onde passa o simbólico, mas jamais janela”. E todos estes buracos ( bueiros) e desvios aparecem no filme; de forma exibicionista às vezes ( flânerie de tantos personagens- personas-, de Léaud a Laborieu, de Berto a Douchet). Ronda, devaneia, digressões acidentais; sempre numa esquina, sempre casual e taquigráfico. Ou seja: ao contrário de Lang, não há “nada além nem por trás” da trama de ninharias e quinquilharias ( muitas vezes puxadas do baú do id). Nenhum Mabuse ao fim ( e como princípio). Os filmes acabam por acabar, ou antes: desmoronar. Ficam pelo caminho, à espera do próximo avião from Teerã...


segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Cron-Char

Rever Scanners me levou a Marcas da violência; só para catucar “porque gosto bem menos do Cronenberg maduro que do adolescente”. Creio ter achado a resposta: excesso de pitoresco (Maria Belo vestida de fetiche-menininha para seduzir o marido, uma certa ênfase na caricatura/caracterização, “tipos”). Daniel Arasse nos conta que quando Chardin começou a expor aturdiu seus contemporâneos; porque Chardin, ao contrário de Greuze, não pintava o pitoresco: cenas de família, idiossincracias, tal falha de caráter, tal cacoete servidos e expressos pelo chiaroscuro do leito. Chardin pintava “o pintar”. Em seus quadros, não aparecia o tema, mas a pintura. Daí a preeminência da natureza-morta.

Um bule pintado por Chardin não era um bule que me sugeria o chá, a mesa posta, o mood da cena e meu prazer “em estar nela”. Um bule pintado por Chardin é “um bule pintado”: o que lhe importa é a textura, a forma, o nacarado do ser bule. O que o bule perdia em verossimilhança e expressão ganhava em presença: O ser bule presente. Não um bule novelesco, pitoresco- eu e minha mulher tomando o primeiro chá pós-segundo aborto da primavera; mas um bule figura, bule-forma-versus-textura-versus-enquadramento-versus-rugosidade-trompe l’oeil do bule presença. Cronenberg seguiu o caminho contrário ao de Chardin; em sua fase pregressa, o esqueleto de seu découpage autópsia- onde apenas assomavam (e nos afrontavam), em primeiríssimo plano-arena, os corpos, onde as forças digladiavam. E não foi para isto que o grande cinema nasceu?- para filmar corpos, tablados energéticos onde os deuses se emasculam? O interesse nos corpos persiste, o découpage quase estruturalista ainda nos adstringe o ar, com seu sumo de argila temperada com corticóide - mas tudo soterrado sob “l’azione debole” do pitoresco, o famoso fru-fru. Ai....

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Othon: Notas


Visto Othon pela primeira vez ( em casa) e... filme punk.


1. Um découpage lingüístico sob o découpage- já em si violentíssimo, cheio de zooms e faux-raccords vertiginosos. Na língua - línguas, em vários sotaques e entonações- falada pelos atores, a sensação de ser um daqueles escravos da Antiguidade, acorrentados a uma fila. A paisagem vai passando, mas o sujeito não tem tempo de contemplar, perceber, ser ( por que o sujeito à época ainda não tinha nascido? E hoje- 1969- já havia morrido?). O escravo ( eu!) é empurrado, espojado, atropelado pela massa de circunstantes- e de sintagmas. Num huis clos espectral ( pois projetado pela linguagem), Straub instaura uma arena. Como em Shakespeare, o horror “é” o fora de campo- a História devastadora, o sangue derramado e o fel sob cada verso-, e só percebemos seu cortejo de sombras, em três quartos de perfil e bronze fúnebre.

2. No início e no fim de cada plano, este assombroso- assombrado- látego mítico: o vazio e a Morte, plano desmesuradamente inerte e inerme, infestado de mortos até a boca. Huillet sempre deu um “tempo a mais”, muito além do funcional, à Natureza ( ao seu abismo mítico) nos filmes- vide o diálogo de Édipo e Tirédias nas Nuvens-, mas aqui ela extrapola: é a Morte que nos contempla.


3. O dito classicismo francês de “clássico” nunca teve nada; sobretudo Corneille e Racine parecem autores do barroco Século de Ouro. Palavra sufocante, encadeamento de arabescos que submerge sob seu lancinante cortejo de aves de rapina o pobre orador (seu ethos, seu fôlego). Se os atores aqui falam como se fizessem cooper, é para dar uma última pá de cal nas duas figuras do Logos, o emissário e o destinatário, e deixar apenas o Onimoso ressoar: não se ouve nem se entende nada ( pelo menos não o fim de uma terceira visão), e nesta justa e caduca medida somos afetados: caixas de ressonância fantasma de uma palavra falada pelos mortos e destinada aos mortos, pretéritos e pósteros, jamais “presentes” ( o que dá um acre sabor de ironia ao hieratismo manchado de salitre dos atores-monumentos de Straub; são monumentos, mas fúnebres, infiltrados de quistos decassilábicos por todos os lados).


Punk, punk. Tão violento quanto um The crazies, e talvez com usos não muito distantes.


Tem no Surreal moviez o dvd completo para baixar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Straub, Stroheim, Mundo

Depois de ler o elogio do Straub a Stroheim ( http://www.elumiere.net/exclusivo_web/internacional_straub/textos.php) , corro pra rever meia hora de Foolish wives e... não é que é verdade? o plano de cinema- o espaço fílmico- em Stroheim ( como, generalizando, em todo grande clássico) deve coincidir com o espaço mundano; deve exibir a plenitude multidimensional do mundo presente: se um de seus príncipes fake praticam tiro a esmo, é contra o horizonte do mar”. Se ele está de olho na filha limítrofe do traficante local, é sob as arcadas do palácio ou à beira do esgoto da encruzilhada. Isso parece evidente, mas tem de aparecer no plano: o mar, a encruza, o palácio. Em épocas de simulacro e dispositivos, este caráter hardcore ontológico do cinema tende a ser elidido ( e lamento por isso, com Jean-Marie). Em cada plano, ficam evidentes o gesto perverso “e sua situação”, como num marécage no qual o desejo necessariamente deve se incrustar ( flutuar). A tara não é só do sujeito, mas do sujeito no mundo ( e do mundo). À tara decadentista dos nobres ( ma non troppo) de Stroheim, acrescem-se perversões que necessariamente se ancoram na alteridade, no Fora, no outro lado da rua para existirem: o exibicionismo e o voyeurismo. Não basta a copa e cozinha fetichista pela auto-destruição de decadentistas que lhe são ( quase) contemporâneos: Schnitzer, Strindberg, Hauptmann, Mann. Aqui, o cu tem de vir à rua e à rua ofertar sua imundície. O próprio recalque deve aprender a se prostituir.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Design for living



Um vaudeville lacaniano, em que o objeto a- o sexo, o dinheiro- ronda fantasmagoricamente a todos os outros- sem ser propriamente posto em cena. A obra de Lubitsch é sobre a prostituição vertiginosamente "necessária"de tudo e de todos- mães e crianças, caixeiros e dandys, bonecas e sultões, soldados e noivas abandonadas- no mundo capitalista. Por prostituição entenda-se: valor de troca substituído a valor de uso; tudo se esquece e se passa adiante, lépida e levianamente. Então, esta é sua obra-prima- com os outonais melodramas kammaerspiel , Broken lulaby e A loja da esquina-, pois este balanço, esta falta de eixo entre parceiros \predadores é o próprio eixo do filme. Outra coisa: amo aqueles gestos sem noção e situação na narrativa- esta parte maldita do gesto na centralidade do plano, puro desperdício de duração e figura ( as poses de Hopkins no divã, o chute no vaso de flores, os goles em copos d´água e vinho). Nestes momentos, o "balanço" cínico e desencantado do filme recua e nos mostra idiossincracias na ocupação de um espaço e na dilatação de um tempo que não estão nada distantes do conceito brechtiano de Gestus ( numa chave caricata e Jugendstill, é evidente).


quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O ouro dos pobres


Lendo The hungry and the dying- Beggars and bishops in Roman Cappadocia- e revendo Dois destinos, Zurlini. A relação? Pobreza e experiência. Não há uma sequência na qual Mastroianni- esta voz off que encarna o Logos do irmão morto- não afirme positivamente a pobreza como sendo o locus de uma experiência privilegiada da finitude- de uma experiência tout court, pois há outra vida que não a finita? O livro de Susan Holman fala de sermões de três bispos da Capadócia romana na alta Idade média, três elogios onto- teológicos da pobreza. Esta positividade da pobreza- que caracterizou a visão de mundo de um Francisco de Assis, por exemplo- é um panegírico da finitude, típico de um certo cristianismo, marginal e errante, que meio que se perdeu nos labirintos da história da Igreja. Mas o seu credo, o seu númen e os seus pastéis elegíacos permanecem preservados nesta obra-prima de Zurlini; e qual seria o privilégio dos pobres em matéria de experiência? por que seria o corpo do pobre o lugar- antes: o ponto de encontro- de um secreto e árduo trabalho de redenção, cuja música embalsama de ausência as furtivas presenças do filme de Zurlini? Simples: é porque os pobres sabem que vão acabar. Então, a vida se perfuma e se colore, imprevista e jubilosamente, e o presente se faz dom, e o futuro ( possível) Graça. Nesta hora e meia que nos reservaram ( acolheram?) como testemunhas de seu precário e final rendez-vous, os irmãos cavaram uma clareira de Eternidade- e a memória era a musa das musas para os gregos; algo tem aí, não?- nas trincheiras da dor e da desilusão.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

La piel


Almodóvar reencontra seu gênio fabulístico, mas como sempre erra a mão; se a referência é o Franju de Olhos sem face- e sobretudo Les nuits rouges, com seu feérico deslavado, semi-moribunda Paris laudate dominus feulliadiano- , a Almodóvar falta o que sobra ao ranzinza encantador de crianças com Alzheimer: o senso da litote; em Franju, a imagem fascina por ser um éclair entre o playground e o túmulo, o carrossel e o punhal; por estar cercada de buracos negros, que a tensionam e lapidam.Em Almodóvar, excesso de layers narrativos- retórica incrustada na já retórica estrutura do filme-, como por exemplo no jogo entre primeiro e segundo planos, no baile, para indicar expressamente- “demonstrativamente”, ei-lo- “que a menina tímida precisa entornar mais um drink para ficar com o rapaz por quem se interessou”. Se há uma coisa clara na minha cabeça, é que excesso de Logos- e narrativa é Logos, aposta na significação- arrisca matar a criança ( no caso, a imagem). A não ser que a narrativa sirva à imagem, como num jogo, em que Acaso e Necessidade dão-se as mãos, pra se trair na próxima esquina ( Rivette, Ferreri, Argento). A primeira meia hora de La piel que habito é magnífica: superficial e superfuida como o bisturi que desliza sobre palpitantes nervos, para mais adiante tropeçar numa veia aorta renitente, que vai obrigá-lo a roer e a trinchar -até que, extraviado pelo sangue e pelo músculo, o gélido vermezinho se veja submerso sob uma retórica hemoglobínica, que já não serve nem ao vampiro nem ao autopsista...


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Nogli

Dicionários atualizado

Dois belíssimos textos de Dominique Païni para o Papai Noel do Dicionários de cinema: O filme: alegoria da máquina cinema e O retrato, sobre Vertigo. E como ng é de ferro, uma notinha minha de introdução, que espero que leiam. E sobretudo divulguem!!, pelos Facebooks e Twiters ( como se escreve isto?) da vida, divulguem algo chic e foda , tão diferente dos peidos que soltam por ali. Foi um trabalho insano traduzir isto tudo sem ajuda de alma viva nem morta, num período já meio insano; então, divulguem. E se quiserem mandar uns Chateau Lafitte eu não vou reclamar não.


http://dicionariosdecinema.blogspot.com/

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Duas proposições sobre Oliveira, o romanesco


1. René Girard: “O romanesco narra a história da abdicação e morte do Desejo”. Segundo esta lógica agonística, a obra de Oliveira pode ser vista como o serviço fúnebre completo- Exéquias, Requiem, Laudate Dominum e Compelle entrare na Eternidade- do Desejo.


2. Mas se podemos afirmar que o ser na fotografia está definitivamente morto- em seu particípio passado, selado e enterrado-, no cinema este se resguarda numa condição assombradamente amniótica, entre a vida que já não é e a que não mais será: vida zumbi, fantasma, gerúndio-limbo. Se então todo o filme é necessariamente um filme de fantasmas, se toda matéria luxuriante e presente é animada pelo celulóide inapelavelmente por uma última vez- Cocteau, outro prestidigitador: Le cinéma c'est la mort au travail-, as exéquias-fílmicas de Oliveira atingem o prodígio ( dom?) paradoxal de- em seu afã materialista à la Lucrécio, atomicista-, fixarem no lapidar e marmóreo nicho da matéria “de que são feitos os nossos sonhos” as ausências- todas as ausências- de que seremos- fomos- a herança e o legado.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Take care: pontos e contrapontos



Vi um filme que odiei hoje, o Take care of your scarf do Kaurismaki. Mas por isso mesmoescrevi em meu blog um texto mais ou menos robusto, porque filmes aos quais odeio me dão ótimos pretextos e contextos pra falar de um monte de coisa que me interessam ( ou seja: valores e ideais do ego).


1. O filme dá a impressão de um inventário obsessivo de objetos- as ações dos homens não usam ou situam os objetos, mas são usadas por eles. De alguma forma, fala de reificação, com um tanto de paródia e uma ethos melancólico de fotonovela.

2. Sem relação, mas com relação: Freud designava o fetiche- o apego obssessivo a um objeto- como “souvenir écran”. Ou seja: o cara se apega àquilo, tira-o do contexto vital e temporal da vida, o fixa e empalha; assim, ele a pode dominar. Ao mesmo tempo, o fetiche- bota, carro- vira uma tela que encobre do sujeito a visão da realidade, que é sempre móbil, Outra, aquém ou além de minha posse; enfim, o que não posao reter/ter/prever/castrar. Reificação existencial, digamos.

3. Me lembra os irmãos Cohen, mas isso pra mim é uma péssima impressão. Tudo muito marcado e demarcado, e ainda este preto e branco excessivamente clean- como O homem que não estava lá- que enfatiza o “que merda de vida levamos, mais parecida com a Morte”, mas isso aqui também é um filme art-house, então não vamos exagerar: interditos humores, bruscos acessos esquizos, devires-bicho. Tendo a achar que sujeira, feiúra e pobreza fazem muito bem à arte, e este esparadrapo esterilizado é asséptico como um corredor de hospital.

4. O filme flerta tb com os primeiros filmes do Ermanno Olmi, Il posto sobretudo- , de que gosto muito; mas os filmes do Olmi narravam experiências de inadequação radical, geralmente entre jovens proletários e a selva das cidades; mas aí abriam uma brecha encantadora entre os bailes de subúrbios e as deambulações entre bueiro e posto policial ,que eram o único lugar onde eles podiam existir realmente, ter uma experiência. Aqui, como num filme dos Cohen, não vejo espaço para descoberta: as marcações são excessivamente visíveis, os personagens as seguem rigorosamente- ou seja: não existem por-si-, a composição sempre equaciona objetos e personagens ( a rigor, não há primeiro versus segundo plano, não há diferença, portanto: presença).

5. No filme, a rigor, não há contracampo- falo por princípio, é claro que um filme é feito de campo e contracampo-, masnão há um olhar que divirja, que faça a diferença. O contracampo, como em Fassbinder, deve entrincheiras na clareira do campo um possível: um radicalmente Outro outro ponto de vista, um horizonte ( mesmo que de igual destruição, como em Fassbinder). Assistimos os personagens ocupados consigo mesmos- através dos objetos, ou com o si-mesmo dos objetos- mas não há uma alteridade que intruja ali e abra o círculo. A personagem da mocinha na bela cena em que rouba o cigarro do cara que dorme seria um bom caminho, se tivesse sido melhor desenvolvida.Porque se o filme não narra nenhuma experiência-a não ser o acúmulo-invebntário de objetos e tempos mortose, a rigor, dos rastros da morte iminente naquela vida encuurralada - ela tem uma experiência: frágil, passiva, infinitesimal Vida partícula, Germe ou próton.. Ela observa ( e tira fotos). Contempla. um mundo emperrado- um dínamo emperrado e empedernido, como devia ser Roma no auge da decadência ou um gheto berlinense no auge do Miserere. Mas num mundo entrópico como o descrito, contemplar é já uma ação poderosa.

6. A reificação – e creio que é disto que se trata, embora imprópria e indigentemente- teve belos ( lúgubres) usos no cinema: coreográfgico ( Tati), faustiano ( Force of evil, do Polomsky), fantasmagórico ( Lisa e o diabo). Mas aqui a própria mise en scène é reificada, e então não aparece a diferença.


7. Queria falar de algo que me interessa. E pra variar, uso de pre-textos e con-textos de filmes que não me interessam como élan. O cinema moderno acostumou a gente a ter uma certa repugnância ao excesso de controle do clássico, à sua transparência. Ou seja: a conceber como acadêmico todo filme que não carregue as cicatrizes da finitude: tempo, Acaso, improvisação, o corpo ( do ator, mas não só). Este filme, neste sentido, é de uma regressão absoluta. Alguns Fassbinders ( da primeira parte surtout) e Wenders, os Cohen Brothers, e alguns Van Sant, Altman, Ozon-esta cambada- me repugnam por isso, Este cinema fechado sobre si e sem arestas não deixa um lugar pra mim no filme- meu imaginário. E se o filme, por esta rigorosa assunção do processo entrópico- sistema fechado, que acaba, por ausência de alteridade, por auto-implodir, quer se trate de corpos cósmicos, humanos ou corpos-arte-, está em coma ou proto-morto, eu também estou. Sensação desagradável, no mínim


8. Já adorei filmes assim, bem torneados e lambidos, que me davam a segurança e a pujança que nunca tive na adolescência. Um filme como Cinzas e diamantes do Wadja, que vi com 15 anos. Aquilo foi o máximo. A Arte, enfim! Hoje, odeio o filme, justamente por seus morceau de bravoure rocambolescos, sua crença no simbólico, quando cinema é uma arte não-simbólica- no máximo alegórica, mas sobretudo e rigorosamente materialista. Quando vi A passageira do conterrâneo do Wadja, Munch, aí sim eu vi o que era cinema: se passa num campo de concentração, mas não há vestígio de aura ( Oh, a Danação!, Oh,k a Redenção!), Sublimação ou simbólico: é tudo tão rasteiro quanto uma mão de judeu cortada por um lacaio nazista. Isso é cinema: crueldade. Outros exemplos exemplares do que digo/a que aspiro: a mulher que , rancorosa, arranca o manteau do oficial que se recusa em cumprimentá-la, e descobre que ele perdeu o braço na Primeira Guerra (Foolish wives). Ou o coro de crianças leprosas na escolinha do leprosário em Casa é escura, da poetisa iraniana. O professor pergunta: o que é o Belo? Os meninos: ah, o belo... as flores, os espinhos, os raios de sol ( descontando o câncer de pele), a relva... E o feio, o que é? Silêncio sepulcral, como imagino que deve ter sido o que precedeu a fila da entrada nos crematórios em Treblinka.

O feio? Um tímido menino levanta o dedo: O feio... o feio são os olhos, os dedos, o queixo ( trata-se de um menino leproso)... Cinema é isso. Na veia. Ou o burro devorado pelas abelhas em Las hurdes: nada obrigava Buñuel a precipitar a morte do pobre animal ( Piedade, vovó?), jogando mel e abelhas sobre o corpo do burrito. Uma única coisa o inspirou: a chance de ver o Trágico- esta experiência para nós perdida e sepulta- feito carne; antes: feito devir. Esta crueldade, esta carne e este osso, esta vida e esta morte uma merda como Kaurismaki jamais atingirá.


9. Um último adendo: diferença entre clássicos - que é o travesti do filme do Kaurismaki, cool e marmóreo- e acadêmico ( seu quinhão, tão-somente).

Mesmo no cinema dito clássico, qual a diferença entre o clássico e o acadêmico? O clássico é um jogo entre a pulsão-tesão, númen- e a encenação; o acadêmico só fica com os códigos,a encenação. Vou dar exemplo de um cineasta que amo, Preminger, nem sempre bem visto. Anatomia de um crime e Bon Jour tristesse ( esplendor das aparências versus criticismo); a cada plano sequência feérico da bela e culpada Jean Seberg ( porque ela vai crescer, embora não saiba; mas Preminger já sabe, e crescer é culpa e tormento) se seguem planos médios/fixos inquisitoriais, em que os personagens se julgam mutuamente. Um Lorenzo da Ponte versus Brecht, mediado por La Rochefoucauld, no intervalo entre duas sequências. Um jogador: Coup des dès, controle, féerie, Processo. Seu grande herdeiro, em outra chave- fá-, é Rohmer.

10. Ao final, em nosso socorro a dialética.Preminger ( ao contrário de Karismaki) é um clássico: alguém que fala de sublime, mas este sublime passou pelo colhão, entende? Elsa Morante falou uma coisa linda, que levou Pasolini a se apaixonar por Mozart, a quem odiava: Mozart é leve, mas é uma leveza fúnebre. É a leveza de quem passou pelos abismos. Clássico é isso. É leve: Mozart, é transparente, flutuante, transparente como o zéfiro que eriça a Graça? É. Mas o é dialeticamente: é uma leveza que passou pela merda, pela falta de dinheiro, pela doença; que não apenas contemplou a Morte; que a levou no bolso e a masturbou na coxia, enquanto Almaviva estridulava seu ciúme em primeiro plano. Foi seu cúmplice, seu amante, seu criado, e, quiçá?, seu arauto. Mas em pianinho. Por isso ele ficou- porque soube jogar, confrontar, digladiar com a Morte ( ou: simbólico)-, e Salieri não (embora Bartoli gravou Salieri , e fiquei abismado com certas árias). Acadêmico é aquele que só fica com a forma, sem o númen; é aquele que espreita a Morte da janela, flerta e pisca para a Morte. Será o primeiro a ser levado pela signora di tutti.

Filme morto em princípio e por princípio o de Kaurismaki: ele não vai para a cama com a Morte, não se apaixona por ela, não a dissipa sob o axilar aconchego do sepulcro; como Carolina, vê a Vida - e sua puta siamesa, a Morte- da janela.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Kuleshov

Vendo O grande consolador. É fascinante como estes russos pré-revolucionários- Bauer, Kuleshov, Barnet um pouco antes- tem algo em comum e que encontrou uma insuspeita posteridade em "certa história do cinema": são filmes extremamente distópicos- com uma tendência hierático-icônica no tratamento dos corpos no espaço ( que Eisenstein só redescobriria no fim de sua carreira, e que Dovjenko explorou brilhantemente com fins alegóricos ), mas ao mesmo tempo lúdicos, mosaicos esquizo de slapsticks, chanchada e gênio performático, coisa que o cinema contemporâneo só iria reencontrar no late Godard, num Paradjanov ou Terayama ( e vejo touchs de proto-Moullet aqui!) Continuo achando que só um approach genealógico- diacrônico e descontínuo- pode dar conta das verdadeiras filiações da(s) História(s) dos cinema(s).

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Teatro das matérias


Um jeu de massacre ( infra-estrutural) fassbinderiano filmado como uma comédia de costumes super-estrutural ( os Artistas, Arte, Schiller, Fütwangler, etc). Mas com vários equívocos/atos falhos- verbais e de raccord- entregando o jogo: os arrivistas, os artistas, o Dinheiro, a Arte... O filme mais serenamente cínico e materialistamente dançarino ( la gravité c’est la grâce) desde A regra do jogo.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Ostia


Bela surpresa Sergio Citti como diretor. Picaresco, lúdico e grotesco, mas ao contrário do que o trio de adjetivos sugere, nada a ver com Pasolini. Early Monteiro com Renoir relidos numa chanchada de Eliseu Visconti.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Marlene


Revendo a meia hora final do experimento sado-masoquista in vitro de Fassbinder e... Queria saber de alguém que tenha visto a montagem da peça como se consegue representar no teatro aquilo sem o qual não consigo conceber o sentido do filme: o olhar de Marlene. Há um triângulo claro ali: dois membros que agem ( e reagem), ocupando sucessivamente as posições de sujeito e objeto. E um terceiro vértice, que- à imagem e semelhança da câmera, colado à câmera- registra e revista o que se passa. Mas o embate do casal é impensável sem este olhar plasmado na máquina, este bicho escópico que ronda a arena... como mostrar este ponto de vista no teatro, como materializar esta mediação- da mulher rejeitada E proletária- sem a qual as partes em processo não se situam como papéis (em trânsito recíproco e concorrente, segundo a velha lógica fenomenológica do senhor e do escravo) , como posições deontológicas e eróticas, como gato e rato? Curioso...



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

http://dicionariosdecinema.blogspot.com/2011/11/gloria-feita-de-sangue.html

Carpenter

http://www.youtube.com/watch?v=4Ht-7YE_OnQ&feature=related



Halloween, The thing, Príncipe das trevas são filmes metafísicos. Jamie Lee Curtis, assombrada “por nada”, dá uma olhada pela janela; contracampo taciturno sobre um lençol ao vento. Não era nada. Mas Nada... era o Nada! O filme todo é sobre o Nada; nos quatro últimos planos, o mestre de cerimônias enfim des(aparece). Afinal, qual o horroxr primeiro e último senão o horror vacui, a intimidade secreta e fatídica com aquilo que um dia vai nos devorar?

segunda-feira, 31 de outubro de 2011


http://unsoirunplan.blogspot.com/2011/04/corps-coeur-paul-vechhiali-1979.html


.. só consigo conceber como uma questão política o fato de um cineasta como Paul Vecchiali permanecer virtualmente desconhecido da cinefilia ( vide hemofilia) em geral e de um suntuoso mestre de cerimônias do Nihil- na linha dos grandes decadentistas, de Nerval e Poe à Lautréaumont, de Lovecraft a Sacher Masoch- como Fulci permanecer relegado às prateleiras mofadas de vhs como "gourmandise" trash. É a impressão desagradável de ser passado pra trás, tão bem traduzida na expressão... estão nos escondendo o ouro.

terça-feira, 25 de outubro de 2011


Essential killing é FODAAA!!!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Pássaro

Revisto o belo Pássaro das plumas de cristal. O filme me lembra ainda mais Blow up que Profondo rosso. Literalmente: o zoom escava blow ups na imagem, a amplia, a desvela; é o que vai permitir a sua ratificação\retificação, a imagem justa, a que jaz sob a anamorfose. Sam vê da vitrine de uma galeria o "que lhe parece" ser uma mulher sendo agredida. A história do filme- como, aliás, de todos os filmes de Argento- consistirá num estudo ( autópsia?) da imagem ( Brenez), correlata à enquête da intriga. Qual o status de uma imagem? Alucinação, prova, impressão? Sam vai ter de esperar pelo fim do filme para transformar aquela imagem enrevista- flash fotográfico- num plano de cinema: anexar-lhe o fora de campo, o ponto de vista correto, o som off-, e enfim aceder à visão justa: adequação entre o percebido e o real, o Logos e o Ser. Belo tratado maneirista sobre as profundidades que jazem em toda superfície.