quarta-feira, 24 de novembro de 2010

... Estranho processo o de assistir a filmes nestes tempos: entre trechos de O sangue, de Pedro Costa ( no dvd), me alterno aqui vendo dois Pierre Léon- Li per Li e Le dieu Mozart 2 -, e passei “vista d’olhos” ( bonita e desusada expressão) por Quadrille de Guitry e um curta de Griffith para a Biograph. Ver filmes hoje já é uma operação crítica, porque implica um potencial de montagem; e montagem é, por princípio, a forma através da qual o pensamento- ao menos o pensamento representativo ocidental- se estrutura: linkar, relacionar, articular.

Perdemos a inocência, eis a lição maneirista; mas agora perdemos a inocência da inocência, pois ver um filme é desde sempre ser tomado e retomado por centenas de outros filmes e mediações; não propriamente mais uma experiência no sentido clássico, mas uma síntese esquizo e a posteriori, pois o trabalho ainda só se dá retrospectivamente, como na experiência clássica, mas segundo um devir diacrônico, irregular, ora atropelado ora retardado... recortes de recortes, perceptivos e cognitivos, pois um dado importante nisto é o caráter de collage adquirido pelo próprio tempo: ninguém vê mais um filme do início ao fim, ou do fim ao início- o arché e o telos perderam todo o prestígio. Ninguém tem mais um início e um fim, ninguém mais reencontra ao final do filme o seu início, e nele se reencontra.

...Mas algo me diz que é preciso assumir este caleidoscópio quântico de estímulos sim, mas com a sobranceria e altivez de um velho estóico grego, do cimo de uma colina verdejante... ui! sob o risco da jouissance cinematográfica passar a não se distinguir em nada dos sobressaltos mecânicos e espasmos eletrodinâmicos de um Sonic the Hedgehog... o autômato espiritual.

sábado, 20 de novembro de 2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010




"L'attitude de jouissance dont l'art implique la possibilité et qu'il provoque est le fondement même de l'espérience esthétique; il est impossible d'en faire abstraction, il faut au contraire la reprendre comme objet de réflexion théorique"

Hans-Robert Jauss, Petite apologie de l'expérience esthétique.

... ponham aí junto neste playground Hitchcock, Welles, Rivette, Carpenter, Argento, De Palma, Johnnie To, Oshima, Lynch, Tsai, Carax, Monteiro, Terayama, Schroeter, Ruiz...

domingo, 7 de novembro de 2010


"(...)The great Czech-born philosopher Vilém Flusser once mused on the difference between a screen wall and a solid wall – for him, the convenient key (like so many mundane, everyday phenomena, of the kind that Gomes also alights upon) to understanding our civilisation and its discontents. The solid wall marks, for Flusser, a neurotic society – a society of houses and thus ‘dark secrets’, of properties and possessions. And of folly, too, because the wall will always be razed, in the final instance, by the typhoon or the flood or the earthquake. But whereas the solid wall gathers and locks people in, the screen wall – incarnated in history variously by the tent, the kite or the boating sail – is “a place where people assemble and disperse, a calming of the wind”. It is the site for the “assembly of experience”; it is woven, and thus a network.

It is only a small step for Flusser to move from the physical, material kind of screen to the immaterial kind: the screen that receives projected images, or (increasingly) holds computerised, digital images. From the Persian carpet to the Renaissance oil painting, from cinema to new media art: images (and thus memories) are stored within the surface of this woven wall. A wall that reflects movement, but itself increasingly moves within the everyday world: when I was a little child and once dreamed of taking a cinema screen (complete with a movie still playing loudly and brightly upon it), folding it up and putting in my pocket so I could go for a stroll, I had no idea it was a predictive vision of the future, the mundane laptop computer or mobile phone.

For a long time, cinema has seemed to be inextricably wed to the solid walls of halls, theatres, cinematheques, and now hi-tech home theatres. Wed to dark rooms and their Gothic dark secrets, to assemblies and pre-programmed public events. Our Beloved Month of August, in its own, remarkable vision of an ‘expanded cinema’, a cinema of multiple panels or screens interacting in space and time, frees the viewers’ minds and lets their emotions roam: through documentary and fiction, through music and travelogue, through drama and comedy, through the plaintive directness of eternal pop culture and the Baroque convolutions of modernism and postmodernism. Of course, it is literally not a museum installation, not a new media piece. It’s an old-fashioned film that gets projected from start to end in a linear fashion, that truly takes you on the passionate journey that every, lesser movie promises to do – but also manages to multiply that journey and the entry-points that we, as spectators, take into it. "



Adrian Martin


sábado, 6 de novembro de 2010

Treno popolare, Matarazzo


Renoir+Vigo+ René Clair+Marcel Carné= Obra-prima.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ressurreições




Borzage também filmou uma ressurreição, e belamente. Mas a verticalidade do morto em Ordet é um desafio da frontalidade - circunspecção, cerimonial, rito, Requiescat in pace- ao gregarismo horizontal das pessoas que desfilam pelo quarto: contra a mortalidade iconizada do plano frontal, a percussiva cadência da panorâmica em Dreyer, que a princípio recorta cada personagem em seu espaço-tempo específico para em seguida integrá-los à diapasão de um devir reconciliado- o plano, berço e túmulo dos mortais que nele são entrincheirados e acalentados-, o Múltiplo do Uno. Em Borzage, tudo é vertical, mas num sentido radicalmente contrário ao plano sarcófago de Dreyer: violação epifânica, excitação exógena do corpo morto que se redescobre erótico, histeria. O vampirismo da ressurreição em Dreyer aqui se mostra irradiação pulsional, féerie, Merry-go-round de quarto e sala, literalmente um jorro de tensão erótica que ascende ( a corrida pelas escadarias, vista em plongé) em direção ao êxtase. Um surplus de Eros nascido das cinzas da agonia.

sábado, 30 de outubro de 2010


O filme premingeriano de Lang. Formal e temáticamente.

"Lang veut donner à voir un panorama assez vaste de la societé americaine, fondée à ses yeux sur la compétition et le crime. Comment la compétition et le crime en sont venus à être indissolublement liés, c'est là son propos, d'où découlent les caractéristiques de son style, obéissant toutes à une esthétique de la nécessité que nul autre cinéaste n'a poussée aussi loin. (...) Que ce soit par un élément de dialogue, par un élément visuel, par un personnage ou par l'effet d'une cause dramatique particulière, les séquences s'enchaînent les unes aux autres selon un rythme et une progression logique que semblent obéir à quelque fatum, lequel n'est en réalité que la conséquence des iniciatives croisées de chacun des protagonistes occupés à supplanter, à utiliser ou à annihiler l'autre- vaste toile d'araignée où finalement tous se trouvent pris."

Jacques Lourcelles.
http://elusivelucidity.blogspot.com/2010/10/see-something.html


... sempre me pareceu que A regra do jogo esteve milhas à frente de Cidadão Kane como marco de um certo cinema moderno ( conceituzinho complicado este, se o pensarmos como mera oposição ao clássico)... O uso da profundidade de campo em Welles é estático, maciço, hierático; em Renoir, a profundidade de campo assinala uma série de vetores temporais, de perspectivas que vão se fazendo e desfazendo à medida em que a câmera confunde ( embaralha, distribui, desestabiliza) as dimensões... o estatismo de Welles é plenamente justificado, em se tratando da história de um bufão - teatral e radiofônico- que progressivamente vai se tornando uma caricatura de si mesmo, confundindo-se com as máscaras e os espelhos que usara para enganar os outros, e em sua desenfreda passagem de arrivista a deus ex-machina do establishment se confunde com o décor , se petrifica e cauteriza... de fato, Cidadão Kane é antes um compêndio de técnicas ilusionistas que refletem os métodos manipuladores de Kane para se apossar idólatramente do real, para transformá-lo numa imagem especular de si mesmo. Aliás, como Hitler e ( devo dizer) Roosevelt à época também faziam; como o próprio Welles também fazia , e sempre o fez...

Mas a Regra do jogo é mais do que isto: é um puzzle ( como Kane), mas de puros possíveis, de estratos temporais; não há peça a achar para encerrar o jogo ( Rosebud), não há Bild a se reconstituir, totalidade a se fechar e auto-centrar, não há Paraíso perdido a se decifrar; há apenas um vertiginoso caleidoscópio de relances e brechas, de interiores que se entrebrem um instante para logo depois voltarem a se confundir com o espaço absolutamente exterior- superfluido e superficial, como pede o velho classicismo do século 18, de que Renoir é um intérprete inconteste- de passos e gestos de dança, da quadrilha à la Musset que consiste em transformar o palco- o plano- num tablado de puras circunvoluções cinéticas e durações em jogo, em fuga...
Lendo o extraordinário- didático e estiloso; óbvio e ululante; algo melhor?- livro do Thoret sobre Argento e relendo o pleonástico L'homme ordinaire au cinéma do Schefer. Por que pleonástico? O filme consiste em variações obsessivas sobre a insônia, e a vigília do Nosferatu uterino em que todos voltamos a nos transformar numa sala de cinema é a metáfora-mor em torno da qual Schefer vai desfiando seu cortejo semi-cataléptico de sonambúlicas inspeções: do erotismo, do vampirismo, do fatal ostracismo sob a casa, a memória, a imaginação e o túmulo. Uma das mais equívocas e onívoras reflexões sobre a alucinação particular, ilustrada por Dreyer em Vampyr- um dos favoritos de Schefer-, que consiste em acreditar que a nossa vida- a dita verdadeira vida, desperta e consciente, plausível e concatenada- realmente existe.

domingo, 24 de outubro de 2010

Welt


Só uma nota, a desenvolver: Welt am Draht talvez seja o ( belo) filme de Fassbinder que mais radicalmente nos questiona acerca da possibilidade de um ponto de vista da coisa sobre o mundo: é possível à reificação engendrar fantasmagorias? Velha questão da superestrutura, que assombrou o expressionismo, quando o homem finalmente se percebe visado e representado como objeto pelo mundo, inversão cognitiva e perceptiva que nubla- borra- de cacofonias a evidência cristalina do mundo capitalista: exéquias do sujeito, cauterização do mundo.

A "coisa” ( que não é das ding) é agora, naturalmente , o cérebro-máquina, o autômato espiritual elevado à condição de autônomo cibernético, o computador. Mas a “coisidade” habita também- como sempre em Fassbinder- estas grandes e soturnas bonecas maneiristas, veladas de rouge à lèvres e submersas num torpor vegetativo, de que Martha- a esquizo e espectral boneca sado-masoquista- constitui uma espécie de transcendental. Em Welt, é o homem de negócios quem é perseguido e castrado: eficiente e fatalista, paranóico e diligente, um fruto bem polido do Milagre econômico e da má consciência que o Milagre recalcou- criei este monstro e ele me recria? ; como o senhor Amok, é um monstro que nos espreita entre o café e a chacina, o escritório e o manicômio, a meio caminho. Aqui como ali jamais aspiramos a uma impossível síntese, permanecemos estilhaçados e à bout de souffle: a esquizofrenia é o preço a se pagar pelo establishment. Aqui- ao contrário do senhor Amok, e como em toda a obra de Fassbinder-, o estigma do ser coisa se encarna na mulher, a marionete de cristal, a spinto de kammerspiel, a Puta babilônica do Wirtschaftswunder, que trafica influências e máscaras como o nazista traficou cadáveres e Adenauer marcos. Este demônio- que Margit Cartensen representou como ninguém, faux-raccord materializado no estrabismo esnobemente adunco do olhar- , torturado e expiado por Fassbinder toda a sua vida, aqui mostra sua face mais sub-reptícia e venal: as mulheres povoam os recantos do plano, deslizam por entre os interstícios dos tempos mortos, corroem e minam toda superfície - a superfície de macho civilizado, a superfície plana e catatônica da vitrine capitalista, a superfície da superfície nas panorâmicas ondulatórias e espiraladas do prestidigitador de fantasmas ; são as acólitas secretas da paranóia, as estafetas do iminente Apocalipse, que ronda...


mais...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

http://www.nytimes.com/2010/09/13/movies/13chabrol.html?_r=1

"... il faudrait en dire plus sur le maniérisme, qui a contaminé l'ensemble du cinéma depuis une vingtaine d'années, et qui se glissait déjà, mine de rien chez les grands classiques (hawks/
rio bravo, hitchcock/marnie, ford/la prisonnière du désert, il y a un demi-siècle), mais ça me fatigue d'avance ..."

http://skorecki.blogspot.com/2010/08/revu-la-seconde-moitie-de-bob-le.html


...sim, mas aí não se deveriam chamar maneiristas- Powell, Melville, late Hitchcock-, e sim barrocos. Seguindo a linha de pensamento do próprio Skorecki- quando coloca Rio Bravo e outros clásssicos "já nada clássicos" como antecessores das séries de tv- os maneirstas são um fenômeno epocal; questão de linguagem, como sempre, mas tabém de situação numa linha genealógica de crítica e de diferença hermenêutica, entendendo-se aí a diferença sobretudo como um diferir, historicidade do sentido que vai deslindando/delineando uma trajetória, progressiva e "reversiva", ascendente e descendente: de Hawks a Carpenter, mas também de Argento a Antonioni, de Powell a Burton ( e vice-versa), de Vecchiali a Grémillon e Cocteau, mas também de Fassbinder a Sirk e Sternberg, e de Sternberg/Sirk a Fassbinder... verso e reverso, senão não há sentido no método e rigor consequente na abordagem.

Dwoskin




Home movie e music-hall, Frans Zwartjes e Kenneth Anger, mas numa arena de Living theatre: o cinema de Stephen Dwoskin radicaliza este salto sem rede que a geração experimental dos 70 empreendeu até os limites acrobáticos da afasia e da auto-desintegração: projetar afetos e performances de sala, cozinha e banheiro num happening, levar para o palco o que até então fora reservado à coxia e ao camarim: a troca incessante de máscaras, ou antes- a ronda exuberante na qual uma máscara se funde e se metamorfoseia na outra, se mascara. Sado-masoquistas em surdina, Madonas anoréxicas, Quasímodos travestidos de São Miguel Arcanjo, taumaturgos da epilepsia, viciados no haxixe do cu, da boca e da cadeia de humores que estes engendram, corpos atomizados e desatomizados pelas intensidades esquizo-oligofrências que o zoom suscita (ou desvela?); Central bazaar e Dyn Amo são filmes que uma criança antes da fase do espelho dirigiria, se uma criança pré-fase do espelho existisse: narcisistas, feéricos, espectrais; neles, o espaço-tempo de um corpo se desintegra ( e volta a se cristalizar) sob o açoite de mestres de cerimônias- senhores, amantes, partners , como nos 120 dias de Sodoma- cuja varinha de condão atualiza suas virtualidades maquinais e perversas: marionetes, saltimbancos, autômatos para um voraz perverso que ora se identifica à câmera, ora se retrai sob a quarta parede e o limbo de nossa hipnose e, em sua contração animosa e inanimada, espera o corte da vez para o salto na presa.

terça-feira, 31 de agosto de 2010


Bruno Cremer

1929-2010

quarta-feira, 4 de agosto de 2010




"L'aigle, le corbeau, l'immortel pélican, le canard sauvage, la grue voyageuse, éveillés, grellottant de froid, me verront passer à la lueur des éclairs, spectre horrible et content. Ils ne sauront pas ce que cela signifie. Sur la terre, la vipère, l'oeil gros du crapaud, le tigre, l'éléphant; dans la mer, la baleine, le requin, le marteau, l'informe raie, la dent du phoque polaire, se demanderont quelle est cette dérogation à la loi de la nature."

Os cantos de Maldoror, Lautréamont


Tudo em Monteiro, como em Lautréamont, nasce da pulsão. A metamorfose, o princípio plástico e ontológico de seu cinema, é carnívora: transformar-se num Outro é digerir e assimilar-lhe a Persona- trocar de máscara-, e assim centuplicar a própria força; é instilar no predador a centelha do divino, como na mística de certas tribos canibais: Devoro-te ou decifra-me. Uma espécie de féerie do demoníaco: a única transfiguração possível a um herdeiro de Stroheim e Buñuel.



Broken Blossoms


Revendo a pérola Lírio partido, pensando em Lang, Tourneur e na posteridade do que nas origens se avizinha do fim...Um maëlstrom de fúria que se abate sobre um cubículo, um titã sobre um lírio... Concentracionismo do melodrama vitoriano: posições e oposições do opressor – no centro do quadro, ou à direita- e do oprimido, abaixo do quadro ou recostado contra seus limites, geralmente à esquerda: esmagado ou entrincheirado. Toda uma ontologia e deontologia ligadas à superfície material do plano, este campo randômico de forças que se encarniçam em ocupar o centro do quadro, e neste ( por este) o podium da arena; expansão irrefreável da força, centrífuga e centrípeta irrupção da Morte, rajada de Nihil que propulsiona a criatura para os limites indevassavelmente recuados do fora de quadro, reserva da memória e da imaginação, onde ainda podemos retê-las, resguardá-las, mas apenas in memoriam, trop tôt, trop tard, o tempo de um contracampo- que aliás não vem, nem virá nunca, pois já não há a quem cor-responder ou contemplar.



sexta-feira, 30 de julho de 2010

Espelho mágico







Por mais que eu queira deixar de ser o centro, nunca posso colocar-me do ponto de vista de Sírius, que seria o único e o verdadeiro.


Karl Jaspers



O espelho reflete: que se é. O inefável se mostra: hic et nunc. Mas a câmera espelha o espelho, ela magnifica sua potência de revelateur: como o espelho, é uma superfície que reflete superfícies, corpos feitos de luz e de sombras, volumes, texturas; mas ao contrário do espelho- e nisto ela o excede e o enquadra, cadre do cadre- ela apreende- não: entreolha- os corpos conservados no líquido amniótico da presença, o tempo. O espelho pretende ser uma imagem do Eterno, ou capta a imagem como um estigma do Eterno, vetustez do retrato de família e do cerimonial galante ; logo, nos apresenta uma imagem falseada ótica e ontológicamente: fazemos pose para o espelho, aprendemos a encenar , a mentir diante do espelho ( com). A nos fixar e nos eternizar diante do espelho, e nos eternizar em um determinado papel, um certo Ego. A morrer, portanto. O espelho é o anátema da presença; nele, o humano se afirma e se exalta às custas da exclusão do horizonte de todo sendo ( das in-der-Welt-sein),o tempo.


Alfreda jamais conseguirá ver a Virgem Maria enquanto tiver a si diante do espelho; se tivesse olhos para ver, como nós- que não vemos o que o espelho nos oferece, mas o que a câmera nos vela-, veria o que lhe aparece- às expensas dela- em quase todos os planos do filme: a viração, a luz e a sombra brincando sobre os corpos, um fiapo de música ao longe. Não exatamente o divino - interdição suprema no judaísmo e no cinema, sobretudo o divino frontalmente, face a face- , mas o único milagre que nos será dado presenciar sobre a terra: parafraseando Hölderlin, o rastro do desaparecimento do divino, o que o divino deixa para trás, ao retornar ao escaninho do Nada. Este evento se oferece a quaisquer, não necessariamente o homem, basta ter olhos para ver: um olho mecânico por exemplo, mas fixado no tempo e no espaço absolutamente necessários para testemunhá-lo; como dizia Monteiro: só há um ponto onde colocar a câmera, e é este ponto que é preciso descobrir. Ia falando... ah , sim, o rastro da ausência do divino: abundância de significantes sem significado no cinema de Oliveira, plenitude gloriosa- numinosa?- do signo justamente porque não atrelado ao escopo do simbólico ( Signos banhados na luz gloriosa de sua ausência de explicação, etc)


A câmera vê mais e melhor que o espelho: vê tudo, justamente na medida em que se sabe ( nós a sabemos) finita, contigüidade dos pontos de vista e de treva: um Todo feito sobretudo de partes, em sincrônica e sucessiva ordem.Vê tudo por não aspirar– como o espelho- a de tudo se apoderar e submeter à autarquia do Ego, seus brasões de família: o selo do Olvido e da dissolução. E se o espelho merece o status de uma visão verdadeira- de uma vidência- é quando vira uma câmera, como na projeção final das imagens de Veneza.

O que é merece ser eternizado, mas somente enquanto situada numa rosa dos ventos temporal, pretérito imperfeito do subjuntivo, jamais totalmente presente, em vias de passar e advindo de: “Sempre te amei”, diz a mulher ao marido. Mas era como se fosse para depois. Para toda a vida. E eu cuidava que era muito cedo para começar a eternidade”. A câmera faz justiça ao que é, dá-nos uma visão justa, mostrando-o ao mesmo tempo como o que foi e o que será. A justa visão, a visão dos justos: se tivéssemos olhos para ver, veríamos o que Alfreda talvez apenas tenha podido ver à hora em que seus olhos se entrefechavam para sempre; mas aí já não o pôde dizer, e levou o segredo consigo, como é de praxe em toda sessão de camara obscura, prestidigitação, sessão espírita ou projeção de cinematógrafo: levar o segredo consigo.



Se pudéssemos ver como a câmera, que registra apenas as pegadas, o que ontem não era e amanhã talvez não seja mais, veríamos: que toda entrada e saída de campo equivale a uma retração e a uma plenitude de ser, a uma efeméride e uma Eternidade; que todo sorriso é uma epifania, e toda comemoração o átrio da ruína. Aliás...Alfreda , sem o saber ( pois ainda não sabia ver, ao menos de forma justa, conforme ao transitivo do divino), assiste a uma aparição da Virgem: é Marisa Paredes, velha e enlutada virgem, que entra e sai do campo ao fundo, transparência que se esfuma na distância da luz e do tempo; e a profundidade de campo nos sugere que muitos poucos, talvez alguém dotado de uma monstruosa hipermetropia espiritual, poderia tê-la visto, antes de se encaminhar para nós, e assim adquirir os contornos de uma figura , um presente, inspirando ao nosso olhar horizonte e foco. Não, não, era uma miragem...O que é que a mulher fala mesmo à “aparição” em seu leito de morte? “Parece que foi no jardim. Lembro-me de si e depois não lembro. Havia árvores em flor, e o chão em volta delas estava cor de ouro.”


Ps: Espelho mágico, como em Track of the cat ( o morto na cova) e Vampyr ( o morto a caminho da cova), nos dá um ponto de vista impossível, limítrofe: refletido no espelho, transformado agora numa câmera, o olhar de uma mulher em coma passeia por recantos outrora amados, o teto de um hotel em Veneza, o Horto das Oliveiras...Vemos por ela, nela: ou somos vistos? Manoel de Oliveira consegue o estranho ( demiúrgico) prodígio de dotar o inanimado de uma aura ( vide tantos planos enigmáticos de estátuas e objetos, ao longo de sua obra), a Morte inclusa: de conferir ao mundo, silenciado pela ausência do divino, o poder de voltar os olhos para nós, e igualmente ver.


Notas Manoel de Oliveira






Grande parte da singularidade do cinema de Oliveira vem de um uso bem particular e incisivo do contracampo. Ou uso nenhum, escasso uso, sobretudo nos últimos filmes, ou nos filmes com planos seqüência: Benilde, Quinto império, Singularidades, Espelho mágico. Nesses filmes, recita-se ou presenta-se, mas sem réplica: os personagens habitam dimensões diferentes no mesmo plano, e o "estrabismo" da personagem de Leonor Silveira em Singularidades de uma rapariga loira– a negação do raccord materializado na recusa de um corpo e de um olhar a refletir o outro, a representá-lo, e portanto em consentir no pacto da narrativa e da farsa que esta encena , quando contada pela vítima do logro- é anunciado por posições- retrações- semelhantes em Espelho mágico, Princípio da incerteza, Dias de desespero. Em filmes em que o contracampo significa efetivamente- índice de-, um buraco negro se abre no filme; é um índice, ok, mas negativo: sinaliza a entropia do sentido, ou a impossibilidade de demarcar um único, de exprimi-lo portanto, o caráter amorfo e irredutível do ser à expressão ( anti-expressionista?).

Dou um exemplo lancinante que me vem à cabeça: Michel Picolly contempla uma ninfa pela qual se apaixona à beira do mar, em Party ( ainda Leonor ilveira, mulher que con sua dicção contrapuntística em stacatto, mostra que Brecht é belamente possível no tablado de uma língua lisboeta). Corte para as pedras acariciadas pelo marulho das águas, mas sem ninfa. Novamente o plano do homem, desnorteado, e em seguida um plano subjetivo que inventaria- uma pan- o espaço da cratera que se abriu no filme: teria ela se afogado? Ou seria realmente uma aparição?

Em Inquietude, o amante de uma prostituta fin-de-siècle contempla a mulher tocando piano, e entre o plano em que a câmera espera por ela- que se levanta para ir de encontro ao piano- e anseia por sua volta tardia, temos uma necrose do tempo que, cinco minutos depois, vai nos levar à visão da mulher metamorfoseada numa deusa ( mortuária) de Poussin, derreada para trás- outra, morta, passada, mas eternizada como efígie- enquanto em off o homem lhe dedica um poema fúnebre...O espaço, o tempo, a percepção centralizada e centralizadora que neles se ancorava, a percepção do mundo como uma instância única e absoluta que se dá ao homem- e se dá integralmente, na fulminação do plano-, e que o homem se assegura de fixar e reter... onde estão? Onde o mundo, onde o homem, onde a vida cálida e enamorada, onde o Eu? Contracampo como nota de rodapé da situação ou Nesga apocalítpca, rachadura de uma inominável Angst que finalmente aflora à superfície- mesmo que de soslaio, como em todo grande ironista-, e neste instante decisivo ameaça arrastar tudo consigo... o cinema é uma série de signos banhados na luz magnífica de sua falta de sentido. A barbárie que espreita sob a fímbria de toda civilização, o caos sob todo cosmo, o milagre sob o jogo de interesses- xeque mate...

Oliveira, com Renoir e Buñuel, é dos diretores chave para se abordar este paradoxo fundante de se representar no cinema uma visão crítica do conceito de civilização: como uma arte de superfícies pode se arrogar o poder de encenar um jogo de máscaras, de superfícies que remetem a outras superfícies, mas verticalmente, profundidade superficial que Marivaux e Musset, com seus vaudevilles espiralados e clins d’oeils entre uma réplica e outra- a réplica é o rodapé do teatro clássico francês- souberam, se não capturar, ao menos sugerir, com uma piscadela maliciosa...o cinema suporta no máximo a apresentação de uma superfície a cada vez, um estado de coisas pontual, um gesto que a tudo o mais cristaliza, mas precisamente aqui e agora: uma arte da sucessão, que suporta com dificuldade superposições, analogias; portanto, repugna-lhe um tanto a metáfora e absolutamente o símbolo. O contracampo é a piscadela de Oliveira, é a escapada deste aqui e agora, deste sintagma do plano, e do absoluto que nele se apresenta, o absoluto que é o ponto cego da retina onde toda ideologia burguesa se abrigou: a negação das passagens e transições, dos interstícios, do clin d'oeil, a manutenção de um estado de coisas- estados de coisas- pelo fetiche do rito.

Oliveira- um moralista do século 18 mascarado de satirista picaresco do século de ouro, mascarado de insurrecto da Comuna, mas apenas nas horas vagas, depois da taberna-, mostra-nos ( mas de fresta, entreabre-nos a porta) que o jogo não é tão simples, as cartadas se multiplicam, e com elas as máscaras, a civilização é apenas o efeito de superfície de tantas outras superfícies bárbaras, e basta inverter uma ou duas regras, inventar um terceiro ponto de vista, e a virtude transmuta-se em corrupção, o vício conduz por um atalho à santidade...a risada final de Camilo diante do túmulo ( risada? já não me lembro bem) em Dias do desespero é a sobranceira mirada sobre a natureza movediça- sarabanda e redemoinho, jogatina e fliperama- de todas as aparências...

Dias de paraíso




"Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo
E seu colo espera o noivo divino"

De Profundis, Trakl.










Malick não aprofunda nada; roçamos a superfície dos seres e do tempo: gestos soerguidos por um instante da regularidade taciturna da duração; amniótica aragem de corpos que por um instante pousaram sobre o plano; morre-se casual, discretamente, sobretudo num átimo de segundo, e já estamos do outro lado, confundidos com o vento e os seixos do caminho; um corpo entre outros, como Richard Gere no final do filme...os personagens de Malick ( contemos entre estes um cachorro que dança, um negro e seu ragtime de recreio, um casal de crianças que brinca de matar, um guerreiro panteísta, as planícies, a nesga de sol, a trégua de sombra) não tem tempo de chegarem a ser... ficam pelo caminho, mas não sem antes ter conhecido o “promesse de bonheur” de que fala Proust, o instante como Eternidade; Malick empresta ao mito ( o Filho Pródigo, o Bom selvagem, Noé), ao mundo arquetípico e acabado, o frêmito das coisas mal deslindadas do casulo, por-cerzir e por-vir. Com isso, temos um movimento sincrônico: Uma sobrevida ao mito, encarnado em corpos ungidos com a graça que Nietzsche encontrou na dança de Bizet ; e um hieratismo de marco imemorial ao dia recém-nascido, e já crepuscular.







"What a photograph depicts has been; what a painting depicts comes into being in the picture. What a movie depicts can, in each of its details, be said to have been: each thing we see must have been there before the camera, which has no imagination and 'infinite appetite for the material'. But the movie as a whole, the world of the movie, comes into being on the screen. What has been is documentary, what comes into being is fiction; a movie is a fiction made up of documentary details. The camera doesn't make things up, it receives their light from reality; but the projector has its own light. One camp of film theory , the camp that stresses photographic realism, subordinates the projector to the camera' documentary image; the other camp, the camp that stresses fantasy and the imaginary, sbordinates the camera to the projector's illusory image. But the film image is both the camera's and the projector's: the material ghost"

The material ghost, Gilberto Perez.

índex, ícone, presença, representação... cada vez mais a oposição Macmahonista de um cinema da fascinação ( leia-se artifício) oposto a um cinema ontologia ( leia-se: um dar a ver ao mundo) me parece regresisva, devidamente resolvida ( aufhehoben) pela obra de modernistas como Rivette, Cassavetes ou Kiarostami...

Visões





O Uno que nos pinta Brakhage- a fonte in-significante de toda significação, o silêncio que precede toda música e o borrão que aspira à toda imagem- nos restitui o irrestituível.