domingo, 21 de agosto de 2011

Tsc Tsc...


Como no Bigger than life de Ray ( God was wrong!), no Shining temos uma perversão do gesto de Abraão; Deus pede a morte da Isaac - substituída depois pela circuncisão- como um ato contranatura que vai fundar o simbólico, a cultura. Ou seja: um filho por uma obra, Cultura versus Natura. Aqui, como no filme de Ray, a obra é impossível (impotência criativa aqui, impossibilidade de mobilidade horizontal na América macarthista lá). Então, destrói-se o filho: Natura vence Cultura, perversamente, pois não se trata mais de sacrifício- sublimação da ligação natural pelo gesto simbólico-, mas de demiurgia psicopata; vitória da Natura perversa sobre a Cultura ( agora) impossível.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ruiz, este conhecido


Morreu hoje Raul Ruiz, e me comove pensar que perdi ( perdemos) uma espécie de tio querido- que certamente seria esculachado por nossa mãe, pai e algarves, embora fosse o honnète homme que eles nunca puderam ser-, que desde sempre esteve aí, antes de virmos à luz, e permaneceu, e o seguimos por todos estes anos, fiel a si mesmo, sem jamais seguir outro princípio que não o da canina- auto-irônica, masoquistamente alegórica, entre Stern e Swifth, Klossovsky e Karl Kraus- fidelidade a si mesmo, aos seus fantasmas; e neste chiaroscuro em que sua obra se equilibrava- entre exuberância gótica e xamanismo éluariano, entre vidência e humor crepusculares, seus labirintos-, nesta fidelidade materna aos seus próprios fantasmas, contemplou todos os nossos fantasmas...

A frase é velha, de Tolstoi ( ou Pessoa?), mas não há quem o diga melhor: “Não há melhor maneira de ser universal do que contar a sua aldeia”... a nossa aldeia interior, aquela de onde, às pressas, porque o tempo urge e a vida é só um sonho ( como dizia aquele rouiziano do século 17 que foi Calderón), retiramos nossos trastes e seguimos caminho; de carona, à pé, caminhão, alagados, esfomeados, crianças manchadas de noite e orvalho, mas sempre em marcha... Ruiz, este exilado espiritual, também foi vítima da História, desta História ainda enlameada que mancha nossos calcanhares- nós, latinos, nós, estes desgarrados, entre Espanhas, Portugais, colo mulato e túmulo na floresta, nós, os Não-Idênticos, os que sobram- História a quem todos ainda se negam a cumprir luto, até que a própria História os recoloque no caminho do luto e da mortificação... como latino-americano e desgarrado de sala e quarto, me comovia pensar em Ruiz como dos últimos herdeiros daqueles tempos ( heróicos? agônicos?) em que Arte e Revolução eram uma única coisa, Arte e Verdade talvez, Arte e Reconciliação quase que certamente, Arte e Utopia não tenho dúvidas...ele lutou a boa luta- como escrevia São Paulo, na comovente última carta que legou ao apóstolo Timóteo, na qual pedia um cobertor de frio pra passar a noite na masmorra... a luta justa, a luta digna de um artista e de um homem que sempre se soube para aquém e para além do próprio homem, este ser feito para ultrapassar a si mesmo, e fazer jus ao homem é fazer jus a este aquém e este além do homem, o homem, cuja única nobreza consiste em ser um ente pelo qual as cigarras e os desertos acedem à voz... talvez a mais justa das lutas dentre as que se travaram em tempos fratricidas para o continente, a luta de Allende pela comunidade ideal...

Não há como separar uma coisa da outra, não há como separar nada de nada, não podemos separar: artistas são homens que falam uma linguagem particular, mas falam, mesmo quando em surdina e por trocadilhos; políticos são homens que agem-e são agidos- também por linguagens particulares, que exprimem muitas vezes com seus corpos, seu sangue; homens são seres votados a falar, mesmo quando calam e são calados. No epitáfio de alguém ( Visconti? Pasolini? Ungaretti?), alguém escreveu: Ele sofreu e viveu por todos nós; nele, a História e a vida deram-se as mãos, e seguiram”. Ruiz não viveu sofreu por ninguém; sua obra é a de um esquizofrênico, e faz jus a um século de esquizofrênicos ( Artaud, Kerouac, Syd Barrett); todos falam por ele, os travestis da arte e do pensamento jazem e morrem nele, todas as máscaras, o Fim e o Princípio – se é que não são um só-, Deus e o Diabo ( se é que não são um só). Em sua fome demiúrgica e pathos babélico, Tudo foi por ele. E será.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

No cinema, arte materialista, a luz e o tempo são vetores que manifestam o espírito; eles rarefazem a matéria, a tornam clarividente ( Dreyer). Mas coisa não muito distinta ocorre neste filminho aí. Blow job é um boquete "e" um êxtase místico, com seu sfumato de luz espectral.


Revendo Martha, o que me levou naturalmente a El de Don Luis. Este filme languiano de Buñuel (trabalho foda com a arquitetura e chiaroscuro, para projetar a megalomania do personagem) tem pelo menos duas posteridades: Vertigo e De punhos cerrados. A torre, a paranóia, a metástase...paráfrases secretas da Guerra Fria, e do horror que viria em seu rastro.