terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Flammes




O primeiro cinema de Arrieta capturou ( presentificou) as fantasmagorias da infância e imprimiu-as na superfície empreinte de verité do plano, que a tudo retém, consagra, fixa. O arquétipo desta primeira operação de conversão do invisível no trop visible do plano de cinema era o Anjo. Mas com Flammes já estamos na adolescência, e o fantasma é francamente erótico: um bombeiro, cuja função é justamente “matar o fogo” da jovem ( e poucas vezes a apalavra e a coisa serviram reciprocamente ao literal e ao simbólico sem perder, respectivamente, em pujança pulsional e força de analogia). Mas sabemos , desde Sade até Lacan, que o Desejo é um fantasma- ou seja: nada de determinado, de este ou aquele, etc; conjuga-se, portanto, infinitivamente ( talvez seja a única força infinita que habita o homem); portanto, como não é isto nem aquilo, ele pega, compartilha-se, transmite-se: o jovem americano tinha um demoníaco fascínio pelo fogo, até o fogo consumir toda a família num incêndio; a amiga de Caroline passa a sofrer de flatus vocis, e  acorda nos braços de outro bombeiro: o fantasma erótico da jovem “contaminou” a todos os outros. O Desejo não é coisa – ousia, substância-, e  sim energia: invisível, habita em tudo, décors e Natura inclusive. A maior parte do filme os personagens escrutam, espreitam, auscultam a iminência de sua chegada, e  isto dá aos planos uma aura de suntuosos monólogos mediúnicos: é sempre no interstício entre a presciência do que virá e a sua chegada que o personagem se posta; e Arrieta não precisa sequer indicar literalmente este caráter intersticial do décor, situando-os em limiares, atrás de portas, antecâmaras. Não: o plano já está de tal forma imbuído de energia, de stimmung, de teluricidade que basta deixá-lo lá, à espreita; convertidos em bons entomologistas, contentamo-nos em dedicar toda a nossa ansiosa atenção a discernir a chegada do Desejo, deus que desta feita dispensou a metamorfose animal e preferiu a  modesta máscara lumpen do bombeiro. 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Vingança de uma mulher: O olhar impossível




A vingança de uma mulher, como um filme com o qual guarda semelhanças de pathos e de rubrica, Ne touchez pas la hache, é antes de tudo um travesti literário; embora literal adaptação de Aureville, é uma interpretação do espírito das novelas de Stendhal: um mundo consumido por paixões estertóricas, por opróbrios suntuosos e sacrifícios crepusculares; só que este Sturm und drang “aparece-nos” de forma enviesada, através da distância ironista de um observador, senão desinteressado, pelo menos impenitente- aquele que não tem nada a perder, e  pode se dar à opulenta arte da contemplação sem sofrer os revezes da “vingança de Medea” ou do olhar da Medusa: olhar demais e atentamente para o monstro pode liberar em nós o que o espelho guardava zelosamente.

O menino do teatro, o “raconteur” da história, o décor ritualmente “assinalado” em Vingança de uma mulher são este terceiro olho, este discurso indireto livre de que as tiradas, as digressões,  o estilo expedito e lacônico de Stendhal nos dão a versão literária, navalha afiada pelo sal ático da verve satírica. Já o olhar da “puta nobre”, que se queima até os abismos de uma negra consumição erótica, é aquele que se atreve a ultrapassar os limites civilizados da ribalta ( a pena, a narrativa, o teatro; em suma: da representação), e encarar soberanamente o mundo, em sua abjeta grandeza; só o contracampo das estrelas na noite imemorial está à sua altura, à sua baixeza: seu discurso é repetido em off na contra plongée do céu, sublinhando-se aqui o pertencimento da mulher, possuída pelo horror vacui da paixão impossível,  a uma dimensão pré ou pós-humana, obscenamente cósmica; ninguém mais ousaria assumir- sobretudo em século tão amaneirado, no qual o Eu se refrata em incontáveis prismas de salão e de retórica, furtando-se com método ao tète-à-téte com o próprio daimon- este embate trágico no qual ela se perdeu para sempre; assim, o seu interlocutor a olha uma última vez, mas é como Perseu “ousa” encarar a Medusa: protegido pelo espelho. O espelho aparece novamente na cena seguinte, enquanto a esgrima Noblesse oblige encena-se ao fundo, do som e da profundidade de campo; o nosso homem prefere, como todos ( “Se eu tivesse achado a comida de todos vocês, eu teria me fartado dela como todos vocês e morrido como todos, “Um artista da fome”, Kafka), a antecâmara apaziguada da subjetividade, de que o espelho é o demonstrativo emblema heráldico: as superfícies anódinas de um riacho raso.


Se Rita Azevedo Gomes se recusa a mostrar o corpo ou o rosto da heroína, não é por litote classicista ou recalque oitocentista, de que o filme seria o porta-voz mimético; um filme que chega tão longe quanto Lucio Fulci no imanentismo da carne decomposta ( a cena do coração) não mais conseguiria recuar, dado que a partir de um certo ponto, como o mesmo Kafka um dia descreveu, não é mais possível voltar atrás: o mecanismo adquire demoníaca autonomia, pertinência e impetus teleológico. Se o corpo nos é recusado, é porque a duquesa já pertencia ( como Balibar na despedida no convento de Touchez pas la hache) a um recuadíssimo, vertiginoso e espectral habitat de Distância, onde já nenhum olhar ou súplica as poderiam resgatar: e o cinema, arte materialista, sabe que o morto repousa naquela fronteira interdita, impossível, de que o apelo do Cristo ressuscitado a Madalena é o grande significante: Noli me tangere.