quarta-feira, 29 de dezembro de 2010


Como resgatar o classicismo sem incidir na regressão ou no academicismo...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010


O Tio Boonmee do Apicha é horrorozinho: me lembra Walt Disney assombrado por Helena Blavatsky. O risco do pitoresco, que sempre rondou o seu cinema, escapou do fora de campo e veio se refugiar ( encarnar, literalmente) aqui: temerário materializar fantasmas numa tela em si fantasmagórica, feita de ( por) projeções, de luzes e de sombras.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Última atualização do ano no blog de traduções. Dossiê da Sylvie Pierre sobre O desprezo e Fritz Lang.

http://dicionariosdecinema.blogspot.com/2010/12/fritz-movie-por-sylvie-pierre.html

domingo, 19 de dezembro de 2010

O que significa décor: elogio da centralidade e da frontalidade




" (...) Mourlet dá o preceito metodológico fundamental: 'Permanecer sempre ligado ao centro'. Estética da centralidade, da imediaticidade, o cinema clássico está realmente fundado na preocupação maior de não 'repartir a cena'; o que conta é menos o respeito pela realidade do que pela cenicidade. E em tudo isto alguma coisa se delineia, através da dupla exigência da expressividade imediata- sem meios, a não ser os naturais- e do acordo do gesto com o espaço. Algo que equivaleria ao desejo secreto da mise en scéne: ocupar o espaço, apropriar-se dele e, mais precisamente, dissimular a incapacidade do visual em tratar o espaço, reinjetando nele, fantasmaticamente, a presença de um corpo. Pra as abordagens fenomenológicas, o espaço é o reino do táctil-cinético, a visão só oferece sucedâneos deste; é esta impotência que a noção de mise en scéne quer compensar, esta separação excessiva dos corpos. (...) Nestas estéticas mais homogeneamente constituídas, é sempre com uma nostalgia do corpo que o cinema lida: a mise en scéne é esta nostalgia".

Jacques Aumont.

... e Paradjanov, Straub, Green, Costa, Duras, Mann, Guiraudie, Syberberg, Guiguet, Vecchiali, Biette, Monteiro, Brisseau, Yang... e o senhor acima, o maior cineasta vivo do mundo.
Atualizado o Dicionários com O mundo-olhar de Brian de Palma, texto foda do Katsahnias.

http://dicionariosdecinema.blogspot.com/2010/12/o-mundo-olhar-de-brian-de-palma-iannis.html

sábado, 18 de dezembro de 2010

Apichatpong é mort! Vive Apichatpong!


Olha, francamente: eu até entendo, mas não gostaria de entender o sentido desta rejeição considerável a Eternamente sua por aí. Mas que é uma puta obra-prima, é; e será. O tempo é o melhor ( não: o único juiz), etc, se devidamente usado como mediação, é claro, como médium entre a consciência e o devir das formas históricas ( Die Seele und die Formen, ou algo assim). O resto em decassílabos. Melhor; em Elliot:


What we call the beginning is often the end
And to make and end is to make a beginning.
The end is where we start from. And every phrase
And sentence that is right (where every word is at home,
Taking its place to support the others,
The word neither diffident nor ostentatious,
An easy commerce of the old and the new,
The common word exact without vulgarity,
The formal word precise but not pedantic,
The complete consort dancing together)
Every phrase and every sentence is an end and a beginning,
Every poem an epitaph. And any action
Is a step to the block, to the fire, down the sea's throat
Or to an illegible stone: and that is where we start.
We die with the dying:
See, they depart, and we go with them.
We are born with the dead:
See, they return, and bring us with them.
The moment of the rose and the moment of the yew-tree
Are of equal duration. A people without history Is not redeemed from time, for history is a pattern Of timeless moments. So while the light fails On a winter's afternoon , in a secluded chapel, History is now and England.


Little Gidding, Four quartets

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Bela pauta Pedro Costa na Cinética. Deixo links para dois textos meus sobre O sangue e No quarto da Vanda, favoritos do cara com Casa de lava.


http://www.revistacinetica.com.br/osangue.htm


http://www.revistacinetica.com.br/noquartodavanda.htm

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dovzhenko


Revendo a extraordinária filmografia de Dovzhenko- Poema do mar, Shchors, Arsenal, Aerograd, Michurin, Ivan... uma conexão: iconografia e ritualismo. A Revolução é um evento que se presta à conglomeração de várias construções rituais: religiosas ( idolatria ideológica do povo), mise en scéne topográfica militar, ascese mítica... Aerograd, Terra, Shchors... mas também o mito das origens, da appartenance romântico à Terra ( a Mãe Rússia) ; e por meio deste raccord atávico e tribalista, acena-nos a velha Reconciliação, mas desfocada: dislexia do faux-raccord, acenando para mundos possíveis, dimensões outras, mas seqüenciais. A temas potencialmente reacionários, Dovjenko inflinge a crítica das formas: planos que a rigor não se encadeiam segundo uma lógica de correspondência ( atenuação do contracampo como polemos, sinergia dialética), mas da manifestação; parataxe que antecipa/ gesta Straub, Oliveira: planos disjuntos, diagonais e helicoidais que os tornam ainda mais antitéticos, ou antes: irredutíveis uns aos outros, autistas. Grandes demais ( os planos médios e gerais, a pequena encenação dos personagens versus a grande encenação da cultura, país por construir ou mito por gerar) ou pequenos demais ( planos de detalhes que escavam os corpos, desvelam uma profundidade feita de superfícies, as superfícies da superfície) para caber numa cadeia sintagmática causal, narrativa ou dedutiva. Neles, incrustam-se as idiossincracias posturais, gestuais, pantomímicas dos personagens, concebidos como tipos: há uma tipologia fisionômica e figurativa em Dovzhenko que reaproveita os esquemas behavoristas do final do século 19, mas num registro lírico e numa Gestalt mítica; estrutura narrativa (?) episódica ( vinhetas); digressões, digressões, digressões, como em Ford e Barnet, com o qual tem em comum um humor de slapstick e uma orquestração trágico-musical: movimentos de um drama que delineia um stacatto circular e percussivo, entre a crônica rapsódica e o Dies Irae operístico.


ps: anotar filmes cuja possibilidade de descrição e/ou análise é bem problemática, senão impossível: Aerograd, La nuit du carrefour, Le jouet criminel, Retrato de Jason, Central Bazaar...

domingo, 5 de dezembro de 2010

Manila, nas garras de néon, Brocka


“- Mas enfim, por que você vai ao cinema?

- Sei lá! Ou melhor, eu acho que sei sim: eu vou ao cinema para ver este mundo e este tempo que contemplaram nossa infância.

- Isto é tudo?

- Não! Quem jamais disse que o começo do mundo equivalia à totalidade do mundo?”

Jean-Louis Schefer, L’homme ordinaire du cinéma


“(...) a imagem da felicidade é inseparável da imagem da redenção. A mesma coisa se aplica à imagem do passado, de que se ocupa a História. O passado é marcado por um índice secreto, que o remete à redenção. Não ouvimos em nós mesmos o frágil sopro de ar, com o qual viviam os homens de ontem? As vozes às quais escutamos não nos trazem um eco de vozes agora extintas? (...) Se é assim, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações passadas e a nossa. Esperavam por nós na terra. “


Walter Benjamin, Sobre o conceito de História.


A abertura de Manila constitui uma cartografia fantasmagórica: fachadas e becos de uma cidade que desperta, ainda envolta nas trevas da noite, entulhada pelos destroços da miséria. Um burgo decadente de comércio predatório que a câmera percorre com o olho mecânico e casual de um autopsista que lança uma vista geral sobre o mapa do corpo antes de se fixar sobre o flanco a ser suturado: um jovem rapaz, em um plano médio frontal, chama a atenção do olho vigilante; e basta a câmera deter-se com atenção, basta apercebermo-nos, através do foco diretivo da câmera, que ele está presente para que o filme nasça, que as cores aflorem, e com elas a ficção: o imaginário de um porvir, um conto por desabrochar; de um documentário monocromático sobre uma cidade depredada entramos no mundo turvo e espectral do melodrama. É ao fantasma que habita este jovem operário que o filme vai dedicar sua transparência epifânica, a suspensão do espaço aterrador da cidade numa clareira de quietude e langor, a reserva de onirismo e utopia que o filme de Brocka vai identificar com a infância, a terra natal e sobretudo com o passado: Ligaya Paraíso, a namorada prostituída que Julio, tal como Orfeu, vai buscar no limbo do Hades.


A montagem abrupta e acidentada de Manila se assemelha, em seus propósitos de apresentar a experiência perceptiva da Cidade como uma arena de trauma e expiação, ao “rough cut” paranóico da recriação de M, dirigida por Losey; porém, ao contrário do rato acossado, maníaco-depressivo do filme de Losey, fixado definitivamente nas malhas de um labirinto cujo dead line o espreita desde o primeiro plano, Julio encontra no filme de Brocka um lugar para o seu passado soterrado: através do uso de flashbacks, da câmera lenta, do fade in em certas seqüências, temos acesso a uma espécie de memorial afetivo do personagem, um pathos que resiste ao naufrágio de tudo o que o circunda. Se a sequência final de Manila é uma das mais sombriamente agônicas da história do cinema- com sua saraivada de campos e contracampos num crescendo de terror en sursis e apocalipse eletrodinâmico que em nada deixa a dever ao apogeu do cinema do corpo em Siegel ou Fulci- é porque assinala a intersecção de dois momentos; primeiro, a entrada do melodrama no domínio do trágico- com a decisão final de Julio, que o perde e o salva em um único movimento- pois, como bem nos ensina Jean Pierre Vernant, “a tragédia apresenta o homem na situação de agir, face a uma decisão que implica todo o seu destino; ele vai escolher o que lhe parece melhor, mas ao fazer esta escolha ele estará necessariamente destruindo a si mesmo, pois seu ato- seu pequeno ato- vai adquirir um sentido totalmente diferente do que ele havia imaginado e voltará contra ele num efeito boomerang.. Este homem, que acreditava fazer o bem, vai aparecer aos olhos dos outros como um monstro ou um criminoso. Há uma ilusão em se acreditar que o homem é senhor dos seus atos, diz-nos o trágico.”


Assim, se na maior parte do filme Julio recorda e espera , a partir do instante em que reencontra Lygaia ele é obrigado a agir. O limbo amniótico do devaneio melodramático é substituído pelo presente absoluto da ação trágica: a intensidade naturalista do clímax final mostra-nos a urgência deste apelo, e que Julio aprendeu as regras do jogo predatório de Manila, e se serve ativamente dele; agora encarna outro papel: de cordeiro sacrificado transforma-se em herói de seu destino, ou anjo vingador. Figuras apocalípticas e/ou redentoras, experiência dos limites e limites da experiência, o ato final e transcendente: dadas todas as cartadas num único e certeiro golpe, resta ao apostador o espetáculo de sua própria imolação.


Mas há um segundo momento, como disse acima. É este que permite a Julio e Lygaia uma derradeira chance, a de inscreverem-se miticamente no espaço do filme, não como mero bedéis de um Destino selvagem ou lances de uma partida determinista como é o caso do M de Losey, aliás. No limiar deste instante de Consumação, temos a visão de uma Fatale Beauté, ou de uma Fata Morgana, miragem da hora da Morte ou Plenitude do Ocaso como Reencontro com as Origens: um close de Lygaia, não por acaso introduzido por um fade in superposto ao rosto aterrorizado de Julio. Sacrifício e Redenção, Fim e Princípio, o círculo trágico da reconciliação. O plano que encerra o filme e nos deixa ancorados no território, acessível apenas às crianças e aos contos de fadas, do presente Eterno, ou da presença que se incrusta no presente de uma imagem icônica, e assim adquire o direito à Eternidade. Jean Louis Schefer faz uma observação significativa: “(...) Assim, a duração das paixões ( o que Kierkegaard chamava o caráter de um homem alternativo) pode apenas ser mensurada pelos vestígios das imagens – não em sua duração cinematográfica, mas pelo poder de que estão investidas em permanecer, repetir-se ou recorrerem. Este caráter é muito próximo do que define a transformação da imagem em um duplo mimético- ou seja, naquela espécie de traço ou garantia de registro que é intrínseco ao movimento de desaparecimento ou de desvanecimento do fenômeno”.


A morte de Julio libera a imagem-fantasma de sua namorada, até então prisioneira de sua experiência subjetiva, e como ela sujeita aos esbarrões e desníveis de um itinerário que, em sua progressão em direção à realização ( o encontro com a mulher), encontra infalivelmente o caminho da Queda. O platonismo de Brocka exige o sacrifício do casal para que estes possam ser eternizados no domínio puramente virtual e idealista das imagens, refúgio da infância. Só assim poder-se-ia realizar o mito romântico de que Kierkegaard detém a formula célebre: “(...) sendo o homem consciência, é portanto o lugar onde o tempo e a eternidade se encontram perpetuamente em contato, onde o eterno irrompe no temporal”. É na porosidade da imagem-efígie de Ligaya Paraíso que estas duas dimensões se esposam e fecundam mutuamente ( ou se canibalizam) : uma pátina de Eterno à decadência, um corpo- e seu arsenal de gestos e retrações- à Eternidade.


O fetichismo da imagem inefável e do mundo edênico que esta pressupõe em Brocka só é possível a partir de um aprofundamento radical da imanência: corrupção, prostituição, balé de Eros e Thanatos. A cidade é o demiurgo desta estratégia irônica - tragicamente irônica, ironicamente trágica- que consiste em vislumbrar a redenção apenas sob o prisma da danação. Insiang, Tinimbang, Makliusap ( um filme curioso, com um argumento muito semelhante à Marquesa d’O de Rohmer/Kleist), Cain e Abel... muitos filmes de Brocka descrevem Paixões de uma mitologia romântica e cristã que aspira à conciliação de uma impossível unidade: a família e o Eros individual, a Inocência e a Corrupção, o Campo e a Cidade, as Origens e o Devir. Manila é provavelmente sua obra-prima por operar no interior destas oposições um deslocamento sutil mas decisivo: o trágico não é apenas o princípio arquetípico do aniquilamento do indivíduo, obstáculo à reconciliação cósmica; em sua contemplação se inscreve também uma imagem que, diferida pelo horizonte da rememoração, é a fonte eterna(finita)mente renovável de fascinação elegíaca.