sábado, 30 de outubro de 2010


O filme premingeriano de Lang. Formal e temáticamente.

"Lang veut donner à voir un panorama assez vaste de la societé americaine, fondée à ses yeux sur la compétition et le crime. Comment la compétition et le crime en sont venus à être indissolublement liés, c'est là son propos, d'où découlent les caractéristiques de son style, obéissant toutes à une esthétique de la nécessité que nul autre cinéaste n'a poussée aussi loin. (...) Que ce soit par un élément de dialogue, par un élément visuel, par un personnage ou par l'effet d'une cause dramatique particulière, les séquences s'enchaînent les unes aux autres selon un rythme et une progression logique que semblent obéir à quelque fatum, lequel n'est en réalité que la conséquence des iniciatives croisées de chacun des protagonistes occupés à supplanter, à utiliser ou à annihiler l'autre- vaste toile d'araignée où finalement tous se trouvent pris."

Jacques Lourcelles.
http://elusivelucidity.blogspot.com/2010/10/see-something.html


... sempre me pareceu que A regra do jogo esteve milhas à frente de Cidadão Kane como marco de um certo cinema moderno ( conceituzinho complicado este, se o pensarmos como mera oposição ao clássico)... O uso da profundidade de campo em Welles é estático, maciço, hierático; em Renoir, a profundidade de campo assinala uma série de vetores temporais, de perspectivas que vão se fazendo e desfazendo à medida em que a câmera confunde ( embaralha, distribui, desestabiliza) as dimensões... o estatismo de Welles é plenamente justificado, em se tratando da história de um bufão - teatral e radiofônico- que progressivamente vai se tornando uma caricatura de si mesmo, confundindo-se com as máscaras e os espelhos que usara para enganar os outros, e em sua desenfreda passagem de arrivista a deus ex-machina do establishment se confunde com o décor , se petrifica e cauteriza... de fato, Cidadão Kane é antes um compêndio de técnicas ilusionistas que refletem os métodos manipuladores de Kane para se apossar idólatramente do real, para transformá-lo numa imagem especular de si mesmo. Aliás, como Hitler e ( devo dizer) Roosevelt à época também faziam; como o próprio Welles também fazia , e sempre o fez...

Mas a Regra do jogo é mais do que isto: é um puzzle ( como Kane), mas de puros possíveis, de estratos temporais; não há peça a achar para encerrar o jogo ( Rosebud), não há Bild a se reconstituir, totalidade a se fechar e auto-centrar, não há Paraíso perdido a se decifrar; há apenas um vertiginoso caleidoscópio de relances e brechas, de interiores que se entrebrem um instante para logo depois voltarem a se confundir com o espaço absolutamente exterior- superfluido e superficial, como pede o velho classicismo do século 18, de que Renoir é um intérprete inconteste- de passos e gestos de dança, da quadrilha à la Musset que consiste em transformar o palco- o plano- num tablado de puras circunvoluções cinéticas e durações em jogo, em fuga...
Lendo o extraordinário- didático e estiloso; óbvio e ululante; algo melhor?- livro do Thoret sobre Argento e relendo o pleonástico L'homme ordinaire au cinéma do Schefer. Por que pleonástico? O filme consiste em variações obsessivas sobre a insônia, e a vigília do Nosferatu uterino em que todos voltamos a nos transformar numa sala de cinema é a metáfora-mor em torno da qual Schefer vai desfiando seu cortejo semi-cataléptico de sonambúlicas inspeções: do erotismo, do vampirismo, do fatal ostracismo sob a casa, a memória, a imaginação e o túmulo. Uma das mais equívocas e onívoras reflexões sobre a alucinação particular, ilustrada por Dreyer em Vampyr- um dos favoritos de Schefer-, que consiste em acreditar que a nossa vida- a dita verdadeira vida, desperta e consciente, plausível e concatenada- realmente existe.

domingo, 24 de outubro de 2010

Welt


Só uma nota, a desenvolver: Welt am Draht talvez seja o ( belo) filme de Fassbinder que mais radicalmente nos questiona acerca da possibilidade de um ponto de vista da coisa sobre o mundo: é possível à reificação engendrar fantasmagorias? Velha questão da superestrutura, que assombrou o expressionismo, quando o homem finalmente se percebe visado e representado como objeto pelo mundo, inversão cognitiva e perceptiva que nubla- borra- de cacofonias a evidência cristalina do mundo capitalista: exéquias do sujeito, cauterização do mundo.

A "coisa” ( que não é das ding) é agora, naturalmente , o cérebro-máquina, o autômato espiritual elevado à condição de autônomo cibernético, o computador. Mas a “coisidade” habita também- como sempre em Fassbinder- estas grandes e soturnas bonecas maneiristas, veladas de rouge à lèvres e submersas num torpor vegetativo, de que Martha- a esquizo e espectral boneca sado-masoquista- constitui uma espécie de transcendental. Em Welt, é o homem de negócios quem é perseguido e castrado: eficiente e fatalista, paranóico e diligente, um fruto bem polido do Milagre econômico e da má consciência que o Milagre recalcou- criei este monstro e ele me recria? ; como o senhor Amok, é um monstro que nos espreita entre o café e a chacina, o escritório e o manicômio, a meio caminho. Aqui como ali jamais aspiramos a uma impossível síntese, permanecemos estilhaçados e à bout de souffle: a esquizofrenia é o preço a se pagar pelo establishment. Aqui- ao contrário do senhor Amok, e como em toda a obra de Fassbinder-, o estigma do ser coisa se encarna na mulher, a marionete de cristal, a spinto de kammerspiel, a Puta babilônica do Wirtschaftswunder, que trafica influências e máscaras como o nazista traficou cadáveres e Adenauer marcos. Este demônio- que Margit Cartensen representou como ninguém, faux-raccord materializado no estrabismo esnobemente adunco do olhar- , torturado e expiado por Fassbinder toda a sua vida, aqui mostra sua face mais sub-reptícia e venal: as mulheres povoam os recantos do plano, deslizam por entre os interstícios dos tempos mortos, corroem e minam toda superfície - a superfície de macho civilizado, a superfície plana e catatônica da vitrine capitalista, a superfície da superfície nas panorâmicas ondulatórias e espiraladas do prestidigitador de fantasmas ; são as acólitas secretas da paranóia, as estafetas do iminente Apocalipse, que ronda...


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