quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Il giorno della vita, Alessandro Blasetti


Questão que sempre me intrigou: do status de um contracampo...em Fassbinder, os contracampos são sempre muito distantes, mensurando a alienação dos personagens ( de uns para os outros e deles para o décor): uma radicalmente nova perspectiva sobre o mundo se abre; da sarjeta ao bureau de almoxarife , da chaise-longue de Guermantes à prisão de Notre dame des fleurs ( perversão sub-reptícia inter-planos: estariam tão distantes assim?)...nos clássicos, é quase sempre uma straigt line, que confronta ( antes: designa) as distâncias e as iminências, as arenas pupilares, e posterga ( sublima, ratifica, difere) o confronto propriamente: Noblesse oblige. No cinema primitivo, é choque frontal ( Lourcelles): proscênio contra ribalta.

Nesta obra-prima de sournoise crueldade, o contracampo assinala aquele espaço geralmente interdito no cinema de gênero: a clareira da testemunha, ser alheio à saraivada comumente reservada ao campo e contracampo, ente que habita fantasmagoricamente o fora de campo , instância fundamentalmente temporal ( memória, imaginário) que serve para estruturar nossa percepção contínua de um filme, arte descontínua -découpada espacial e temporalmente- por excelência...O filme narra a invasão de um convento de monjas dominicanas por partigiani fugindo dos alemães. Estas, por voto rigoroso consagradas à clausura, estão impossibilitadas de encará-los face a face; mas uma reconhece num dos partigiani o homem que matara seu marido, ex-oficial, e... Talvez o fato de Blasetti centrar no espectador ( ou testemunha) o efeito das ações do filme seja diegeticamente legitimado: a clausura necessariamente infunde à forma do filme um pudor suplementar, clássico-clássico, em que o olhar é baliza em surdina – sismógrafo, trop tard de- da experiência. Em que experienciar o evento é necessariamente chegar tarde demais- é reservar à pupila, nicho de separação, de a posteriori- sua sôfrega chaga. Olhar é sempre chegar tarde demais, oras!

...mas como estou pouco me lixando para diegeses e outros xaropes narrativos, geralmente suportes para críticos medíocres, centro-me na estratégia existencial- numinosamente- genial desta reserva, desta “centralidade e frontalidade” ( norma clássica , academicamente aposta por Mourlet como regra tout court)- centradas sobre a face do Outro. Pois é dele que se trata...não necessariamente humano: a santa que balança e quase cai, imantada e finalmente fulminada por forças que de transcendentes já nada tem ( a Guerra, a excitação sexual dos solados,o ressentimento do Madre). Ou a kammerspiel sequência na cave, quando do ataque dos alemães, em que blocos tensos e coalescentes de uma treva que insiste em se colar aos corpos constituem ilhotas de intensiva, energética expectação. Tudo e todos no filme de Blasetti são testemunhas- tudo é contracampo. Giorno della vita é dos filmes mais geniais que já vi porque, infiltrado e stacatto de planos sequências por todos os lados- e quão camerísticos e incisivos são seus tons e gestos, quão evanescente sua crueldade e violadora sua presciência!-, é um filme sobre o contracampo: sobre a impossibilidade de sermos plenamente num único e definido ponto do espaço-tempo, de precisarmos necessariamente nos deflagar e dispersa num Outro para sermos: assim como todo ente deve necessariamente desaguar numa alteridade parra ser reconhecido, em cinema campo e contracampo, plano e sequência etc.

E aqui não vai nenhuma punhetagem “logofílica”- sociológica, ontológica... O filme é de uma sobriedade desconcertante, de uma vitalidade mortificante, de um furor clarividente. Sinto-me tentado então a enumerar os paradoxos de São Bernardino de Siena ao enaltecer o esplendor do milagre onto-teológico da Concepção mariana: aqui, o infinito faz-se finito, a fulminação narrativa, a crônica de campanha Sturm und drang demoníaco, partida de xadrez entre a História e o Divino... mas Blasetti tira partido da crueldade inerente à estética clássica: nada se mostra ( ou não parece aparecer), até que seja tarde demais, e vejamos o horror que intersticialmente se mostrara até ali, sem que estivéssemos à altura dele: os cadres no cadre ( sequência genial da câmera “feito mira”, quando do combate primeiro com os alemães, no bosque defronte da igreja); a surdina e o “ser-rastro” com que os personagens deslizam entre um campo e outro, transformando um concertante Merry-Go-round de cortes em farfalhante sussurro de Nihil , em plano sequência cerzido entredentes ( o quão Hitchcock parece infantil, ao lembrarmo-nos dos fondus en noir de The rope!); e sobretudo esta genial intuição de mostrar-nos (?) a presença percebida unicamente como ausência- o tempestuoso e o ominoso sob a máscara do transparente e do rarefeito ( como na missa de Te Deum, da qual só vemos as pequenas, divertidas e ciciantes disputas entre os partigianni, em torno da igreja, contrapostas contra o reticente murmúrio de Eterno que rói o campo)... Este roer espelha por sua vez um canibalismo menos caricioso e bem-aventurado, digamos... os alemães continuam a rondar ( como o Deo Gratias de Haydn entoado aqui), e ao final voltarão a penetrar o campo, com exclusão de tudo o mais... O contracampo como fulminação, só que diferida- o tempo de um filme...

Ao final, esta“centralidade e frontalidade “ , em que a câmera parece corroer a pátina do rosto com os estilhaços da finitude, intenta se justificar... quando do evento monstruoso que fecha o filme, só vemos - na profundidade de campo em que o microcosmo do convento coalesce com o macrocosmo abissal da História à porta- a “coxia” do horror: os comandos extasiados em fúria, a marcha horizontal de soldadinhos histéricos, o braço marcial do comandante, o estrabicamente desvairado olhar de um tenente que parece recobrar a lucidez, por um momento... quando a câmera enfim retrocede e- partigiani agora reunidos, após a morte dos invasores- re-descobre o teatro do horrível massacre que encerra Giorno della vita, a cena, o proscênio e a ribalta do cinema clássico reconciliam-se: a quarta parede ( contracampo) retoma seu lugar no plano sequência, e dança... mas volta a se fechar ( a se entrincheirar ou entombar), no corte final em fondu...
Não foi para isto que nasceram os clássicos? Para dançar? Bizet, Kleist, , Musset, Shakespeare... affaire de coreografia, númen, Espírito ( do grego Pneuma, Ar: Leveza rules). Dancemos sobre os escombros...



Texto meu sobre O som ao redor o Kleber Mendonça na Cinética.

http://www.revistacinetica.com.br/osomaoredor.htm

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cosmo




Cosmopolis é uma obra-prima, mas isto é um lugar-comum espectral que não diz ainda porra nenhuma do filme. Aliás, espectral diz. Ah, sim: a a teoria de Austin sobre os enunciados performativos talvez sugira um caminho para falar de um filme de ação onde a ação consiste unicamente em discorrer sobre a sua imponderável impossibilidade em nosso tempo e em nosso mundo ( mundo? tempo? do que se trata mesmo?).

"Enunciados performativos são enunciados que não descrevem, não relatam, nem constatam absolutamente nada, e, portanto, não se submetem ao critério de verificabilidade (não são falsos nem verdadeiros). Mais precisamente, são enunciados que, quando proferidos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação (daí o termo performativo: o verbo inglês to perform significa realizar). (...) Exemplos: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; Eu te condeno a dez meses de trabalho comunitário; Declaro aberta a sessão; Eu te perdôo. Tais enunciados, no exato momento em que são proferidos, realizam a ação denotada pelo verbo; não servem para descrever nada, mas sim para executar atos (ato de batizar, condenar, perdoar, abrir uma sessão, etc.). Nesse sentido, dizer algo é fazer algo. Com efeito, dizer, por exemplo, Declaro aberta a sessão não é informar sobre a abertura da sessão, é abrir a sessão."