sábado, 18 de fevereiro de 2012

Fuck Dios


http://www.youtube.com/watch?v=tHZDtSsAWR8

Não há cheiro que nos repugne mais que o da comida quando saciada a fome ou de um corpo extinta a libido. Alguém tolera o cheiro de comida no cochilo pós-almoço? Ou o sovaco do amado pós-coito? Disgusting. É porque exalam o cheiro de um corpo em decomposição ontológica; morto o desejo, tudo é fétido e Outro. Só há uma mediação capaz de transcender esta perversa economia da necessidade: der Liebe!, o Amor.
Há páginas e páginas sobre isso em Hegel e Freud, mas nada que se iguale a nossa fome e nossa sede, que a tudo aspiram e em nada se encontram.

PS: O amor ágape do Evangelho, o que é então? A Santa Ceia teve a função justamente de substituir a economia da necessidade pela economia da transcendência; pela mediação do amor ágape – em Cristo e no Cristo-, transfiguramos a Necessidade em Desejo de (pelo) Divino. E a grande astúcia do cristianismo foi esta: dai de comer a quem tem fome de espírito, e ele não mais terá fome de nada. Deram-lhe, então, servido numa cruz, o próprio Deus para comer.

Griffith, o inocente

http://www.youtube.com/watch?v=a9Vw8vIiVIU


Apesar de ter filmado muitos melodramas perversamente idealistas- vitorianos-, Griffith era um cineasta eminentemente materialista; por isso referência constante em Straub, aliás. Tudo nele se resolve nos limites materiais do cadre enquanto cadre: posições deontológicas, affaires de classe, poder e paixão, Blitzkriegs energéticos, confrontos de eidos e de ethos. Tudo. Jean-Pierre Oudart poderia tê-lo facilmente usado como ilustração do seu A sutura; mas não o fez porque Griffith, ao contrário de Bresson, era “inocente” (leia-se: um artista em-si), “pecado” gravíssimo em épocas - paranóicas- de suspeita.

More, Barbet Schroeder: The Self and me



O self foi uma invenção burguesa e metafísica; muitos filmes do marasmo pós-68 apostaram na auto-destruição como meio terminal de transcendência ( ó, Satã, livrai-nos do cárcere privado do ego, amém) e resistência- na UTI embora- ao mundo burguês. A criança secreta de Philippe Garrel (1982) é a obra-prima tardia deste movimento, desta “vasta inflexão curvilínea em direção ao útero”, como algum alemão chamou a morte. No caso, por “overdose geracional”. More (Schroeder, 1969) é o seu aborto temporão; filme errante, histérico (Living theatre de banheirão, pessimamente declamado) e supliciado por um esquema cromático Jugendstil. A rigor, estas poderiam ser qualidades, mas claramente Schroeder não sabe de onde vem nem para onde vai, se do cu para a boca ou vice-versa ( e creiam, esta oposição é séria: Logos versus pulsão). Provavelmente, sofria dos mesmos surtos psicóticos que os heroinômanos do filme, um casal de crias pequeno-burguesas, albinas e narcisistas- Mimsy Farber e Klaus Grünberg, anoréxicamente chatos. Mas a forma circunavegante e claustrofóbica do filme põe uma questão: não seria o girar sobre si mesmo que o filme reproduz- julgando-se embora entre Cila e Caribde- exatamente o espelho do movimento entrópico de uma impossível resistência- existencial, política- no inverno pós-68?

O que os utopistas oba-oba daquela geração talvez tenham concluído, mau grado seu, era que a morte do mundo burguês era na verdade ( e apenas) o assassinato dos seus pais- uma questão familiar, freudiana, não epocal/histórica/estratégica ( a rigor, indiscerníveis no anti-Édipo deleuziano). As suas bombas eram uma cusparada nos estoques do pai patrão; suas barricadas uma cagada na marta da mãe; suas guerrilhas e auto-imolações públicas o estupro da filha do jardineiro. E ao fazer este link, o que me vem à cabeça é o plano em Enfant secret de uma desoladoramente abstêmia Anne Wiazenski no vagão de trem, no caminho do velório da mãe.


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Mas More é um filme que registra este movimento como um sismógrafo-topeira, como obra ou corpo que menos especula ou reinventa que res-sente uma experiência maior do que seu próprio ego ( cu, no caso). O grande tratado logofílico e apocalíptico, a grande cerimônia fúnebre e exorcista desta prematura ( et dejà trop tard) sensação de game over que assolou uma geração viria apenas em 1973, e chamar-se-ia A mãe e a puta.

Usher e a demiurgia do fantasma



Encenações demiúrgicas assombradas pela decadência sempre tiveram uma péssima idéia sobre a representação ( ah, os primitivos e os judeus também: pas d’image, s’il vous plaît!). Ou do mal que o signo pode fazer ao ser. Este Queda da casa de Usher, que Epstein dirigiu em 1928 ( há uma versão bem mais sóbria e camerística dirigida por Astruc) é, com O Dorian Gray de Wilde, o Salambó de Flaubert e O retrato oval - também escrito por Poe e recauchutado genialmente por Godard no final de Viver a vida- das versões mais exuberantes deste fascínio de uma certa modernidade pelas virtudes fúnebres do “significante”. À medida em que é pintada pelo marido- em que vira uma imago-, a senhora Usher, embalsamada pela pátina do Nada, se desvanece e rarefaz; o curioso é que a horrível cópia providenciada pela Continental, à imagem e semelhança da personagem, também vai se decompondo ao longo do filme, irresistível, carnívora e lancinantemente, e acabamos com uma espécie de mise en abyme a posteriori com a qual certamente Epstein não contava.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Léon entrevista

http://www.elumiere.net/video/leon_02.php


Por que o Cahiers perdeu para a chã, anêmica Positif? Simples: o Cahiers sempre defendeu a écriture, na tela e na página em branco. Estilo, mais-valia do sentido. Coisa muito pouco popular numa época predatória- leia-se: funcional e pragmática- como a nossa, em que o significante - a mais-valia,a transcendência hermenêutica do dizer, a diferença, o equívoco polissêmico fundamental à fecundação de uma posteridade- se prostitui no balcão de negócios do jargão, do facebook taquigráfico, da pornografia do dizer ( ou do dizer como pornografia= valor de troca). Ó, Marx, que estranhos caminhos tive de percorrer para chegar até você.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

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http://www.youtube.com/watch?v=0P6qrcw3mgs&context=C3c3d778ADOEgsToPDskLID7PTluO6cNy4RgenLLAg


Upada a abertura de L'étrangleur de Vecchiali, seu filme hitchcock-cocteaunesco, repertório rocambolesco de fantasmas "en avant-dernière": fetiche, duplos, Liebestods de subúrbio. Uma cena originária filmada como se deve: condensação feérica, deslocamento homicida. Ou seja: de pirar o cabeção.

Dois

O que me intriga em Deux fois (Jackie Raynal) é que é um playground estruturalista. É um experimento estruturalista- que expressão feia!-, mas que brinca e viaja. É um Zorns Lemma ( Frampton) mas com a sensualidade e o aparato de mise en scène de um Central Bazaars (Dwoskin).

Trágica farsa


O foda no Teatro das matérias é que é um filme sournois ( sonso): fala de tudo o que Fassbinder passou a vida falando - que as relações eróticas, afetivas e as formas de sua representação na verdade eram disfarces das implicações entre a infra-estrutura e a superestrutura- , mas como se fosse um “clássico”, ou seja: com aparente transparência e nonchalance. Como se não se dissesse nada nem se estivesse a trucidar ninguém ( jeu de massacre, arte francesa desde sempre).

Opening/Carruagem


O que Renoir faz em Carrosse d’or na vertical ( profundidade de campo, campo cache-cache, concentricidade da perspectiva) Cassavetes explora em Opening night na horizontal, com esta vertiginosa contigüidade de espaços, reversíveis e itinerantes, em que copa, cozinha, hotel e palco viram atalhos para um único quarto e sala, habitado por vários fantasmas. Do que falam ambos? Que a rigor não há diferença entre teatro e vida, que o teatro é uma forma de experiência e que a vida é uma máscara que cola na cara, até vir o tempo e cambiar a lantejoula - ou defenestrar o suporte. Lá ( Carruagem de ouro), Camilla vive no inter, limbo da representação onde é cortejada ora pela ópera bufa, ora pelo slapstick, pelo cartoon e pelo vaudeville... Aqui, Rowlands também se equilibra ( mal) na corda bamba de ser e de encenar: jovem e histérica (fantasma) versus star amaneirada e com doses destrutivamente cavalares de auto-ironia, gim e clins d’oeil dietrichianos; mas também quadro e fora de quadro: a arena do palco filmada em planos médios e impromptus ziguezagueantes mais a coxia, vero leito de Procusto de quem usa máscaras e desaprende a tirá-las.


You

Tou upando uns trechos legais de filmes no Youtube, agora que o jumento aqui aprendeu como se faz. Primeiro as coisas da Diagonale. Après, on verra. O último foia abertura de L'étrangleur em dvd. Quem quiser subscrever, o link aí vai.

http://www.youtube.com/user/Jljuniorful

O estranho que nós amamos, Siegel


O estranho que nós amamos é um filme de horror- como todo filme sobre recalque, aliás; do Nascimento de uma nação a Elefante, do Abismos de pasión a La frusta e il corpo, de Nosferatu a Notre nazi. Tem dedo de Buñuel ali ( a descoberta do corpo do Eastwood pela menina, cena foda) , mas com clarões expressionistas!, o que é impensável em Buñuel. E um monte de ponto de vista estranho –por exemplo o de uma bunda ( a da mocinha na hora em que transa com Eastwood e são “descobertos” pela convenção das bruxas). Ou seja: o filme é um condensado energético de fantasmas e desejos alienígenas - canibais, hardcore, Bacantes estraçalhando um Dionísios “republicano”- infiltrados naquela foto diáfana, naquela luz à la Whitman e naquele lusco-fusco ritualístico à la Harriet Beecher Stowe. Eles “nos espreitam” na brecha do ponto de vista e dos fondus.
É como se Fulci tivesse se mudado para o Tennessee e virado pastor quaker, mas a coisa, como em todo conto de fadas, deve recobrir horrores que não ousam dizer o nome, então tem de aparecer o mais bonitinho e “claro dia de verão” possível para vir à luz, para ser tolerada pelo olhar de Apolo ( consciência). Algo que Freud chamou de Umheimlich, e que dá um colorido imprevisto às coisas mais banais- elas nos aparecem como venais e demoníacas, como Outras. Essa ambigüidade está preservada em Beguiled- pastoral e cromo gótico, crianças correndo pela relva ontonal e incestos lavrados num daguerreótipo; e uma Mãe-pai que é ao mesmo tempo um esteio ético- dever e trabalho- para aquele tipo de mentalidade e uma Mater Tennebrarum. Muito do tétrico do filme vem dessa dualidade, deste fantasma embalsamado na infância, apodrecendo no fundo do baú no fundo de uma boneca gasta de esmalte no fundo de seus olhos perfurados de unha de gato e dente de leite.


ps: É também um filme perverso sobre a guerra, a que se trava dentro de nós ( a única?): a guerra do recalque. Combate que consiste na estratégia de liquidação, metódica e calculista, do Desejo. As mulheres daquela Casa de Bernarda e Alba sulina estavam tão destroçadas pela “guerra” quanto o soldado yankee; porque são sobreviventes, ou seja: monstros. “O sobrevivente é aquele que mata o Outro dentro de si. Portanto, está morto também. É um zumbi” ( Serge Daney).

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Ben


Bergman dizia que a maior experiência de sua vida tinha sido a humilhação. A humilhação de ser finito- e humilhado por Deus Infinito-, ser pobre, ser artista ( numa época em que artistas entravam pela cozinha, antes de darem dinheiro). Muitos de seus filmes são sobre isso: as lágrimas que choro no quarto escuro ou sob o sovaco de Deus. Mas não há filme maior sobre a humilhação do artista- ou sobre a lucidez necessária para representá-la- no capitalismo tardio do que The killing of a chinese bookie. O artista, que precisa ser um palhaço- ou seja: levar na cara e no cu sorrindo, como se nada- para poder "ser".

Belles


O sacrifício de Camille no kammerspiel-jeu de massacre marxista e bressoniano (!) Les belles manières, primeiro filme de Jean-Claude Guiguet.

http://www.youtube.com/watch?v=UGpaKNdi-o0&feature=youtu.be

En haut

E agora a sequência final do elegíaco En haut des marches, o filme sobre sua mãe e o passado "colabo".

http://www.youtube.com/watch?v=uBS6Dqi8d5Y&feature=youtu.be

Femmes femmes youtube


Acho que agora foi. Meu primeiro upload no youtube com minha sequência favorita de Femmes femmes, by Vecchiali.

http://www.youtube.com/watch?v=ygijwtP0VbA&feature=youtu.be



Jogos




Pensemos num joguinho, joguinho que todo sobrevivente conhece bem: máscara que te quero máscara. Em que consiste? Alguém- um ser não propriamente humano, não exatamente “propre”- possui uma dor. Ou por ela é possuído. E precisa mascarar o seu ponto focal de chaga. Sua imunodeficiência ontológica. Este ser adota uma tática: desvia para outra dor- uma dor mais comum, que os outros reconheçam- o foco da atenção, e permanece lá sossegado, entrincheirado na sua miséria secreta. Exemplo: um travesti, talvez a figura paradigmática desta camuflagem- este devir-bicho-devir- de todo ser. Alguém que é um travesti e que por isso mesmo- preservado e salvaguardado por este escudo- esfuzia, grita, salta, corcoveia. Os outros pensarão: é este o seu calcanhar de Aquiles, vamos destruí-lo por aí. Refrão banal e chiste de roda: Bichona! E quem quiser que conte outra. Mas este super-travesti, este “O travesti”- para sê-lo, tão abaulado e ogre, tão assustadoramente super- na vera possui outras dores- uma ferida na perna que até hoje sangra, e é só sua, um tio que o esqueceu no armário da cozinha, seu nariz de Pinóquio. É este o seu tesouro secreto, e é isto o que “o toca”. Houve um détour de rota, uma estratégia de camuflagem- estratégia! Avanti!-, uma máscara da máscara. Jogo que os bichos e os seres encantados conhecem muito bem- ou são por ele conhecidos?

Este preâmbulo é para apresentar alguns personagens da História do cinema que jogaram tão bem este jogo que nos conhece tão bem. Mabel de Cassavetes, por exemplo. Esta carnívora franciscana, este reservatório de “dom de si”- como bem traduziu Brenez-, esta reserva inesgotável de numinoso e Graça. E que mascara esta preciosa reserva com a jazida visível e espoliável de outros dons: os vagidos e as mordidas da paranóia, os tumultos da histeria, o olho trânsfuga do cão hidrófobo, que morderá a própria sombra. E o que linka estes dois extraordinários de ser-máscara? O teatro. Sim, o teatro. Na coxia de ser, Mabel- e outros, e todos, e serão todos- sussurra, com um risinho escorrendo pela carótida: ahhhh! peguei eles!

Na cena à mesa com Nick, após apartida dos trabalhadores, Mabel/Rowlands/Mabel joga de clown, goleira e figurante de Feydeau. Virão outros.