quarta-feira, 27 de abril de 2011

Do sangue


Féerie dialética: o horror casado com o lírico ( arredores da mítica Paris, crianças brincando, casal ao vento) geram uma terceira imagem, que os surrealistas sempre buscaram: a medusina face do cotidiano, o rastro de sangue no beijo, a iminente ruína no alabastro da inocência. Dialética em carne viva, e natimorta.

Olhos sem face

Olhos sem face parece um Lang que tomou muito Château Lafite: asséptico, grisâtre, bisturi mordendo a bruma; entre Frank Wright e comics, e basicamente o horror do filme consiste na utilização de um décor gelidamente neutro- leia-se: teoremático- como matéria-prima de uma féerie assombrada, povoada de espectros infantis e obsessões paranóicas à la Mabuse: o Logos a serviço do demoníaco. Muito da posterior associação do Mal no cinema com o informe e o infigurável sugerido pelo branco, arauto lácteo da Morte (e, em sua alteridade fantasmagórica, uma cor gêmea do negro) surgiu daí; em um The fog, por exemplo. É um conto de fadas, mas recitado pelo ponto de vista, míope e lacrimejante- o nevoeiro prateado de Shüfftan, a balada tatibitati e mortuária de Jarré- do injustiçado monstro ( Borges, no Abenjacan: Ariadne, o Minotauro apenas se defendeu!).


terça-feira, 26 de abril de 2011

À ma soeur

Belo e frígido este À ma soeur. Breillat faz tudo ao contrário do que se esperava: um filme de terror em surdina ( como deve ser todo filme sobre adolescência, sobretudo rejeitada) que vai "encasulando" os personagens no formol do “plano feito cena”; e que ao mesmo tempo os permite flutuar, mas de forma insidiosa, com um pé no purgatório, outro no inferno iminente: no jogo entre planos médios e gerais, e sobretudo neste traiçoeiro découpage sibilante que alterna entre planos zumbis e violentos esporros de superfície; filme em que o predador à espreita e a presa a devorar são, não exatamente ( ou apenas) rivais ou figuras complementares do feminino espoliado , mas sobretudo cúmplices de uma mesma experiência de danação e êxtase sob baía-postal burguesa e endomingada.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Berlin

O epílogo de Berlin é uma besteira grandiloqüente, sub-Syberberg, a quem Fassbinder odiava/invejava. Mas a série é um abregé fascinante de suas obsessões: a figura do duplo ( como saca Lardeau no belo livro sobre ele); a imagem sacrificial originária ( a morte da mulher de Franz e de Mieze, outro duplo) como o selo de um mundo reificado e idólatra; os fantasmas da mercadoria, nos arabescos do maneirismo; fetiche, masoquismo, decadentismo. O apocalíptico álbum de imagens de um satirista à la Lichtenberg e um decadentista à la Schnitzler, pós-Wirtschaftswunder: um niilismo anarquista em tempos de prosperidade; alguém lembra do Brasil e dos anos 2000 nesta hora, e da necessidade urgente de um outro espírito de porco genial em tempos calamitosamente anti-messiânicos?

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Blind

Revendo o belo Blind husbands na cópia restaurada do Filmmuseum, talvez o melhor Stroheim junto com o que poderia ter sido Greed. Découpage claríssima, transparente; mas há uma perversa travessia que estrutura o filme- e que se vê em filigrana em toda a sua obra: a passagem do romanesco ( plano geral, notação sociológica, crônica de costumes) ao trágico, ao detalhe naturalista, expresso num close ou num plano médio perniciosamente radiográfico do Mal que corrói cada personagem. Quem iria melhor se aproveitar da intuição de Stroheim – perceber o trágico como uma dimensão a que só podemos ter acesso, numa arte materialista como o cinema, através do “pathos da tara”, do patético da pulsão- em alguns filmes essenciais -e essencialmente desnorteadores –seria o Renoir de Toni, Lange ou A regra do jogo.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Dons


Engraçado: com Accattone- que revi para o curso-, revi também dois outros filmes que adoro- Dilinger está morto e Passageiro: profissão repórter. Accattone é transparente, de uma luz diamantina: meridional, puerperal, presente como uma paixão recém-nascida ou uma morte por sagrar. Os outros dois, pelo contrário, são das coisas mais fantasmagóricas que já vi em cinema: uma fantasia niilista sobre a insônia (Dilinger) e um road movie sobre Um que é um Outro, e não cansa de buscar o ponto de intersecção desta comédia de erros existencial, entre Madrid, Roma e o deserto ( melhor lugar para se perder, só um plano seqüência de Astruc). Mas pensando bem, são filmes sobre a Morte: sobre a Morte como Summa da vida ( Accatone), in retrospecto. E no caso dos outros, sobre- como dizia Cocteau- la mort au travail, esta morte que torna o cinema uma arte tão graficamente invisível e evanescentemente visível, para( doxa) encarnado: dom do Nada e Presença do Dom.

domingo, 3 de abril de 2011

Savates

Les savates du bon Dieu certamente não é do maiores Brisseau, mas é um filme (s) no mínimo muito inventivo (s): um thriller, uma aventura telúrica pelas terras escarpadas do Sul da França e pelos corpos embalsamados de luz ( como tantos de seus filmes), um stand-up comedy para adolescentes em férias de si mesmos - um plano para cada personagem, uma sequência para cada grupo- , mas também um filme erótico incestuoso sobre a Mater Natura, a maior das libertinas de seus filmes: túrgida, láctea, incandecente, venérea- com aquela luz que Gauguin encontrou no Taiti e perdeu na Mancha-, como uma Juliette pós-coito...