quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

L'étrangleur, Vecchiali


Seria interessante comparar esta obra-prima com o didático e tagarela ( não há oposição entre estes termos, justamente o contrário) Partner e ver até que ponto duas estratégias radicais de maneirismo implicam na auto-implosão do maneirismo: Um pathos de gestos lancinantes e cenas hiperbolicamente performáticas se perdem nas volutas de suas próprias trajetórias, descrevem semi-círculos aleatórios em torno de seus ritos alegóricos e vão se reencontrar mais adiante, à bout de souffle. O passeio do assassino Jacques Perrin pelo carrossel cocteaunesco de fantasmagorias de infância; o tema do duplo, aqui paródico na figura do ladrão que segue o encalço de Pérrin para pilhar as vítimas, intrusão de Fleischer e James Cain num universo de Grémillon; a ubiqüidade coreográfica do corpo, saturação de signos exuberantes por uma força que os condena à repetição, à concêntrica expiação de seus próprios limites, mescla de Gene Kelly e Pierrot Lunaire; estas são características que magnificam L’etrangleur como uma experiência limítrofe, um grau zero do maneirismo, seu ponto de exaustão e oclusão: enclausuramento do significante na aura mortal da féerie, circuito enfeitiçado de correspondências e insistências mórbidas- o foulard do assassino, a cena primária do túnel que leva ao crime, a consangüinidade circular dos trajetos do policial, do assassino e da mulher, caça e caçadora- que emula o fascínio do espectador, a presa maior deste sinuoso fliperama de prestidigitações no espaço e bifurcações no tempo.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Da paranóia e da féerie


Lacan dizia do paranóico: Il ramène tout à lui. O mundo é um pré-texto para sua glosa; estridente, ziguezagueante, auto-comiserativa. Teatro, teatro e ainda teatro; na coxia do ser, mas teatro. Rivette usa a paranóia como um expediente particularmente exuberante para suscitar o merry-go-round das narrativas, seu feérico chassé-croisé ( hoje acordei mais francófono que de hábito; passará). Como? O paranóico é um Éden para a invenção de ficções. Afinal, “il ramène tout à lui”. Se um avião explode em Teerã, ele vai ter de dar um jeito de ligar aquele apocalipse histórico-político ao seu, copa e cozinha. More em Bagdá, Perdizes ou no Ibura. Ele terá de necessariamente inventar uma historinha para explicar porque aquele avião- destinado ab ovo e ad eternum a explodir no meu quintal- mudou de rota ( ou foi a Terra que encurvou?) e foi parar em Teerã. Qualquer ponto da Terra ou duração no Tempo deve necessariamente marcar um encontro com seus demônios, e dar em Sabath.

A herança é languiana, claro. Mas Rivevte é um modernista, um filhinho do papai sem papai ( nem túmulo). Sem origem, nem fim; obra aberta, chamam; segue à risca a lição da vovó Daney: “Uma tela é tudo, menos uma janela para o mundo; ela é cu, hímen, todo buraco por onde passa o simbólico, mas jamais janela”. E todos estes buracos ( bueiros) e desvios aparecem no filme; de forma exibicionista às vezes ( flânerie de tantos personagens- personas-, de Léaud a Laborieu, de Berto a Douchet). Ronda, devaneia, digressões acidentais; sempre numa esquina, sempre casual e taquigráfico. Ou seja: ao contrário de Lang, não há “nada além nem por trás” da trama de ninharias e quinquilharias ( muitas vezes puxadas do baú do id). Nenhum Mabuse ao fim ( e como princípio). Os filmes acabam por acabar, ou antes: desmoronar. Ficam pelo caminho, à espera do próximo avião from Teerã...


segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Cron-Char

Rever Scanners me levou a Marcas da violência; só para catucar “porque gosto bem menos do Cronenberg maduro que do adolescente”. Creio ter achado a resposta: excesso de pitoresco (Maria Belo vestida de fetiche-menininha para seduzir o marido, uma certa ênfase na caricatura/caracterização, “tipos”). Daniel Arasse nos conta que quando Chardin começou a expor aturdiu seus contemporâneos; porque Chardin, ao contrário de Greuze, não pintava o pitoresco: cenas de família, idiossincracias, tal falha de caráter, tal cacoete servidos e expressos pelo chiaroscuro do leito. Chardin pintava “o pintar”. Em seus quadros, não aparecia o tema, mas a pintura. Daí a preeminência da natureza-morta.

Um bule pintado por Chardin não era um bule que me sugeria o chá, a mesa posta, o mood da cena e meu prazer “em estar nela”. Um bule pintado por Chardin é “um bule pintado”: o que lhe importa é a textura, a forma, o nacarado do ser bule. O que o bule perdia em verossimilhança e expressão ganhava em presença: O ser bule presente. Não um bule novelesco, pitoresco- eu e minha mulher tomando o primeiro chá pós-segundo aborto da primavera; mas um bule figura, bule-forma-versus-textura-versus-enquadramento-versus-rugosidade-trompe l’oeil do bule presença. Cronenberg seguiu o caminho contrário ao de Chardin; em sua fase pregressa, o esqueleto de seu découpage autópsia- onde apenas assomavam (e nos afrontavam), em primeiríssimo plano-arena, os corpos, onde as forças digladiavam. E não foi para isto que o grande cinema nasceu?- para filmar corpos, tablados energéticos onde os deuses se emasculam? O interesse nos corpos persiste, o découpage quase estruturalista ainda nos adstringe o ar, com seu sumo de argila temperada com corticóide - mas tudo soterrado sob “l’azione debole” do pitoresco, o famoso fru-fru. Ai....

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Othon: Notas


Visto Othon pela primeira vez ( em casa) e... filme punk.


1. Um découpage lingüístico sob o découpage- já em si violentíssimo, cheio de zooms e faux-raccords vertiginosos. Na língua - línguas, em vários sotaques e entonações- falada pelos atores, a sensação de ser um daqueles escravos da Antiguidade, acorrentados a uma fila. A paisagem vai passando, mas o sujeito não tem tempo de contemplar, perceber, ser ( por que o sujeito à época ainda não tinha nascido? E hoje- 1969- já havia morrido?). O escravo ( eu!) é empurrado, espojado, atropelado pela massa de circunstantes- e de sintagmas. Num huis clos espectral ( pois projetado pela linguagem), Straub instaura uma arena. Como em Shakespeare, o horror “é” o fora de campo- a História devastadora, o sangue derramado e o fel sob cada verso-, e só percebemos seu cortejo de sombras, em três quartos de perfil e bronze fúnebre.

2. No início e no fim de cada plano, este assombroso- assombrado- látego mítico: o vazio e a Morte, plano desmesuradamente inerte e inerme, infestado de mortos até a boca. Huillet sempre deu um “tempo a mais”, muito além do funcional, à Natureza ( ao seu abismo mítico) nos filmes- vide o diálogo de Édipo e Tirédias nas Nuvens-, mas aqui ela extrapola: é a Morte que nos contempla.


3. O dito classicismo francês de “clássico” nunca teve nada; sobretudo Corneille e Racine parecem autores do barroco Século de Ouro. Palavra sufocante, encadeamento de arabescos que submerge sob seu lancinante cortejo de aves de rapina o pobre orador (seu ethos, seu fôlego). Se os atores aqui falam como se fizessem cooper, é para dar uma última pá de cal nas duas figuras do Logos, o emissário e o destinatário, e deixar apenas o Onimoso ressoar: não se ouve nem se entende nada ( pelo menos não o fim de uma terceira visão), e nesta justa e caduca medida somos afetados: caixas de ressonância fantasma de uma palavra falada pelos mortos e destinada aos mortos, pretéritos e pósteros, jamais “presentes” ( o que dá um acre sabor de ironia ao hieratismo manchado de salitre dos atores-monumentos de Straub; são monumentos, mas fúnebres, infiltrados de quistos decassilábicos por todos os lados).


Punk, punk. Tão violento quanto um The crazies, e talvez com usos não muito distantes.


Tem no Surreal moviez o dvd completo para baixar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Straub, Stroheim, Mundo

Depois de ler o elogio do Straub a Stroheim ( http://www.elumiere.net/exclusivo_web/internacional_straub/textos.php) , corro pra rever meia hora de Foolish wives e... não é que é verdade? o plano de cinema- o espaço fílmico- em Stroheim ( como, generalizando, em todo grande clássico) deve coincidir com o espaço mundano; deve exibir a plenitude multidimensional do mundo presente: se um de seus príncipes fake praticam tiro a esmo, é contra o horizonte do mar”. Se ele está de olho na filha limítrofe do traficante local, é sob as arcadas do palácio ou à beira do esgoto da encruzilhada. Isso parece evidente, mas tem de aparecer no plano: o mar, a encruza, o palácio. Em épocas de simulacro e dispositivos, este caráter hardcore ontológico do cinema tende a ser elidido ( e lamento por isso, com Jean-Marie). Em cada plano, ficam evidentes o gesto perverso “e sua situação”, como num marécage no qual o desejo necessariamente deve se incrustar ( flutuar). A tara não é só do sujeito, mas do sujeito no mundo ( e do mundo). À tara decadentista dos nobres ( ma non troppo) de Stroheim, acrescem-se perversões que necessariamente se ancoram na alteridade, no Fora, no outro lado da rua para existirem: o exibicionismo e o voyeurismo. Não basta a copa e cozinha fetichista pela auto-destruição de decadentistas que lhe são ( quase) contemporâneos: Schnitzer, Strindberg, Hauptmann, Mann. Aqui, o cu tem de vir à rua e à rua ofertar sua imundície. O próprio recalque deve aprender a se prostituir.