Questão
que sempre me intrigou: do status de um contracampo...em Fassbinder,
os contracampos são sempre muito distantes, mensurando a alienação
dos personagens ( de uns para os outros e deles para o décor):
uma radicalmente nova perspectiva sobre o mundo se abre; da sarjeta
ao bureau de almoxarife , da chaise-longue de Guermantes à
prisão de Notre dame des fleurs ( perversão sub-reptícia
inter-planos: estariam tão distantes assim?)...nos clássicos, é
quase sempre uma straigt line, que confronta ( antes: designa)
as distâncias e as iminências, as arenas pupilares, e posterga (
sublima, ratifica, difere) o confronto propriamente: Noblesse
oblige. No cinema primitivo, é choque frontal ( Lourcelles):
proscênio contra ribalta.
Nesta
obra-prima de sournoise crueldade, o contracampo assinala
aquele espaço geralmente interdito no cinema de gênero: a clareira
da testemunha, ser alheio à saraivada comumente reservada ao
campo e contracampo, ente que habita fantasmagoricamente o fora de
campo , instância fundamentalmente temporal ( memória,
imaginário) que serve para estruturar nossa percepção contínua
de um filme, arte descontínua -découpada espacial e
temporalmente- por excelência...O filme narra a invasão de um
convento de monjas dominicanas por partigiani fugindo dos
alemães. Estas, por voto rigoroso consagradas à clausura, estão
impossibilitadas de encará-los face a face; mas uma reconhece num
dos partigiani o homem que matara seu marido, ex-oficial, e...
Talvez o fato de Blasetti centrar no espectador ( ou testemunha) o
efeito das ações do filme seja diegeticamente legitimado: a
clausura necessariamente infunde à forma do filme um pudor
suplementar, clássico-clássico, em que o olhar é baliza em surdina
– sismógrafo, trop tard de- da
experiência. Em que experienciar o evento é necessariamente chegar
tarde demais- é reservar à pupila, nicho de separação, de a
posteriori- sua sôfrega chaga.
Olhar é sempre chegar tarde demais, oras!
...mas
como estou pouco me lixando para diegeses e outros xaropes
narrativos, geralmente suportes para críticos medíocres, centro-me
na estratégia existencial- numinosamente- genial desta reserva,
desta “centralidade e frontalidade” ( norma clássica ,
academicamente aposta por Mourlet como regra tout court)-
centradas sobre a face do Outro. Pois é dele que se trata...não
necessariamente humano: a santa que balança e quase cai, imantada e
finalmente fulminada por forças que de transcendentes já nada tem (
a Guerra, a excitação sexual dos solados,o ressentimento do Madre).
Ou a kammerspiel
sequência na cave, quando do ataque dos alemães, em que blocos
tensos e coalescentes de uma treva que insiste em se colar aos corpos
constituem ilhotas de intensiva, energética expectação. Tudo e
todos no filme de Blasetti são testemunhas-
tudo é contracampo. Giorno della vita é dos filmes mais geniais que
já vi porque, infiltrado e stacatto de
planos sequências por todos os lados- e quão camerísticos e
incisivos são seus tons e gestos, quão evanescente sua crueldade e
violadora sua presciência!-, é um filme sobre o contracampo: sobre
a impossibilidade de sermos
plenamente num único e definido ponto do espaço-tempo, de
precisarmos necessariamente nos deflagar e dispersa num Outro para
sermos: assim como todo ente deve necessariamente desaguar numa alteridade parra ser reconhecido, em cinema campo e contracampo, plano e sequência etc.
E
aqui não vai nenhuma punhetagem “logofílica”- sociológica,
ontológica... O filme é de uma sobriedade desconcertante, de uma
vitalidade mortificante, de um furor clarividente. Sinto-me tentado
então a enumerar os paradoxos de São Bernardino de Siena ao
enaltecer o esplendor do milagre onto-teológico da Concepção
mariana: aqui, o infinito faz-se finito, a fulminação narrativa, a
crônica de campanha Sturm und drang demoníaco, partida de xadrez
entre a História e o Divino... mas Blasetti tira partido da
crueldade inerente à estética clássica: nada se mostra ( ou não
parece aparecer), até que seja
tarde demais, e vejamos o horror que intersticialmente se mostrara
até ali, sem que estivéssemos à altura dele: os cadres no cadre (
sequência genial da câmera “feito mira”, quando do combate
primeiro com os alemães, no bosque defronte da igreja); a surdina e
o “ser-rastro” com que os personagens deslizam entre um campo e
outro, transformando um concertante Merry-Go-round de cortes em
farfalhante sussurro de Nihil
, em plano sequência cerzido entredentes ( o quão Hitchcock parece
infantil, ao lembrarmo-nos dos fondus en noir de The rope!); e
sobretudo esta genial intuição de mostrar-nos (?) a presença
percebida unicamente como ausência- o tempestuoso e o ominoso sob a
máscara do transparente e do rarefeito ( como na missa de Te Deum,
da qual só vemos as pequenas, divertidas e ciciantes disputas entre
os partigianni, em
torno da igreja, contrapostas contra o reticente murmúrio de Eterno
que rói o campo)... Este roer espelha por sua vez um canibalismo
menos caricioso e bem-aventurado, digamos... os alemães continuam a
rondar ( como o Deo Gratias de Haydn entoado aqui), e ao final voltarão a penetrar
o campo, com exclusão de tudo o mais... O contracampo como
fulminação, só que diferida-
o tempo de um filme...
Ao
final, esta“centralidade e frontalidade “ , em que a câmera
parece corroer a pátina do rosto com os estilhaços da finitude,
intenta se justificar... quando do evento monstruoso que fecha o
filme, só vemos - na profundidade de campo em que o microcosmo do
convento coalesce com o macrocosmo abissal da História à porta- a
“coxia” do horror: os comandos extasiados em fúria, a marcha
horizontal de soldadinhos histéricos, o braço marcial do
comandante, o estrabicamente desvairado olhar de um tenente que
parece recobrar a lucidez, por um momento... quando a câmera enfim
retrocede e- partigiani
agora reunidos, após a morte dos invasores- re-descobre o teatro do
horrível massacre que encerra Giorno della vita, a cena, o proscênio
e a ribalta do cinema clássico reconciliam-se: a quarta parede (
contracampo) retoma seu lugar no plano sequência, e dança... mas
volta a se fechar ( a se entrincheirar ou entombar),
no corte final em fondu...
Não
foi para isto que nasceram os clássicos? Para dançar? Bizet,
Kleist, , Musset, Shakespeare... affaire
de coreografia, númen, Espírito ( do grego Pneuma, Ar: Leveza
rules). Dancemos sobre
os escombros...
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