Há um dos documentos mais relevantes que conheço sobre
cinema: um filme “didático” feito por Rohmer para a televisão francesa sobre
Louis Lumière, em que ele intercala trechos de seus filmes com um papo com os
mestres Langlois e Jean Renoir. Em um determinado momento, Langlois nos dá a
chave para compreender a complexa dialética mobilizada ali, e que tenta, pelos
meios civilizados ( de la litote, comme d’habitude) que eram comuns aos três
homens, desmistificar esta oposição, tão cara à crítica acadêmica, entre
Lumière e Méliés. Ele nos lembra que Lumière “mandou” os operários saírem
novamente da fábrica, porque a porta se fechava muito abruptamente e a câmera não tinha tempo de “dar o tempo
necessário” à captação daquela experiência lumpemproletária; fora o fato de que
Lumière filmava num certo cadre ( limite espacial), num limite temporal (
devido à pobre sensibilidade à luz da película ortocromática), etc...Ele reencenava o espaço-tempo.
Todo cineasta sabe que o espaço que ele vê quando chega na
locação não é o espaço da percepção ordinária, uno e contextualizado; é já um
espaço pré-decoupado, pré-montado mentalmente- já “significativo”,
proto-ficcionalizado. A prise de vue
baziniana já carrega o selo do sentido e o filtro da magia. Um grande ( um dos
maiores) filmes que trabalha esta dialética é Le sang des bêtes, de Franju, em
que o lirismo e o horror contraem núpcias: o excesso de realismo da morte dos
animais acaba por dar uma impressão de super-realidade ( surrealidade), por
intercessão das mediações- as imagens dos arrabaldes “feéricos”de Paris. Feéricos
no sentido de que estes nichos de clochards e crianças ao léu viram depósitos
onde se acumula todos aqueles objetos encantados ( porque retirados da linha de
produção de “troca” do capitalismo) que Rimbaud cita em Uma Temporada no inferno:
refrões velhos, árias de ópera pitorescas, bonecas sem cabeça, etc ; objetos
que, como as ruínas da capital francesa, inspiraram a Benjamin os collages , entre
documentais e escatológicos ( mas há diferença, a esta altura?), de seu último
livro-monumento.
Máscaras, de Noêmia Delgado ( 1976) é destes filmes em que a dita oposição,
desmascarada comme il fault, retoma o seu constelacionismo dialético: aqui,
trata-se de fixar o olho “autopsista”, escrutinador e mecânico da câmera sobre
as ficções, os jogos e as glosas do que acontece em torno.
Em cinema, arte onto-numinosa, basta saber ver para ver do que é feito o mundo: de mistério, maravilha e
horror. É apenas isto o que todo grande filme nos sussurra e morde.
ps: e tem completo no youtube...
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