sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Jogos




Pensemos num joguinho, joguinho que todo sobrevivente conhece bem: máscara que te quero máscara. Em que consiste? Alguém- um ser não propriamente humano, não exatamente “propre”- possui uma dor. Ou por ela é possuído. E precisa mascarar o seu ponto focal de chaga. Sua imunodeficiência ontológica. Este ser adota uma tática: desvia para outra dor- uma dor mais comum, que os outros reconheçam- o foco da atenção, e permanece lá sossegado, entrincheirado na sua miséria secreta. Exemplo: um travesti, talvez a figura paradigmática desta camuflagem- este devir-bicho-devir- de todo ser. Alguém que é um travesti e que por isso mesmo- preservado e salvaguardado por este escudo- esfuzia, grita, salta, corcoveia. Os outros pensarão: é este o seu calcanhar de Aquiles, vamos destruí-lo por aí. Refrão banal e chiste de roda: Bichona! E quem quiser que conte outra. Mas este super-travesti, este “O travesti”- para sê-lo, tão abaulado e ogre, tão assustadoramente super- na vera possui outras dores- uma ferida na perna que até hoje sangra, e é só sua, um tio que o esqueceu no armário da cozinha, seu nariz de Pinóquio. É este o seu tesouro secreto, e é isto o que “o toca”. Houve um détour de rota, uma estratégia de camuflagem- estratégia! Avanti!-, uma máscara da máscara. Jogo que os bichos e os seres encantados conhecem muito bem- ou são por ele conhecidos?

Este preâmbulo é para apresentar alguns personagens da História do cinema que jogaram tão bem este jogo que nos conhece tão bem. Mabel de Cassavetes, por exemplo. Esta carnívora franciscana, este reservatório de “dom de si”- como bem traduziu Brenez-, esta reserva inesgotável de numinoso e Graça. E que mascara esta preciosa reserva com a jazida visível e espoliável de outros dons: os vagidos e as mordidas da paranóia, os tumultos da histeria, o olho trânsfuga do cão hidrófobo, que morderá a própria sombra. E o que linka estes dois extraordinários de ser-máscara? O teatro. Sim, o teatro. Na coxia de ser, Mabel- e outros, e todos, e serão todos- sussurra, com um risinho escorrendo pela carótida: ahhhh! peguei eles!

Na cena à mesa com Nick, após apartida dos trabalhadores, Mabel/Rowlands/Mabel joga de clown, goleira e figurante de Feydeau. Virão outros.


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