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Como resgatar o classicismo sem incidir na regressão ou no academicismo...
O Tio Boonmee do Apicha é horrorozinho: me lembra Walt Disney assombrado por Helena Blavatsky. O risco do pitoresco, que sempre rondou o seu cinema, escapou do fora de campo e veio se refugiar ( encarnar, literalmente) aqui: temerário materializar fantasmas numa tela em si fantasmagórica, feita de ( por) projeções, de luzes e de sombras.
Olha, francamente: eu até entendo, mas não gostaria de entender o sentido desta rejeição considerável a Eternamente sua por aí. Mas que é uma puta obra-prima, é; e será. O tempo é o melhor ( não: o único juiz), etc, se devidamente usado como mediação, é claro, como médium entre a consciência e o devir das formas históricas ( Die Seele und die Formen, ou algo assim). O resto em decassílabos. Melhor; em Elliot:
What we call the beginning is often the end
And to make and end is to make a beginning.
The end is where we start from. And every phrase
And sentence that is right (where every word is at home,
Taking its place to support the others,
The word neither diffident nor ostentatious,
An easy commerce of the old and the new,
The common word exact without vulgarity,
The formal word precise but not pedantic,
The complete consort dancing together)
Every phrase and every sentence is an end and a beginning,
Every poem an epitaph. And any action
Is a step to the block, to the fire, down the sea's throat
Or to an illegible stone: and that is where we start.
We die with the dying:
See, they depart, and we go with them.
We are born with the dead:
See, they return, and bring us with them.
The moment of the rose and the moment of the yew-tree
Are of equal duration. A people without history Is not redeemed from time, for history is a pattern Of timeless moments. So while the light fails On a winter's afternoon , in a secluded chapel, History is now and England.
Little Gidding, Four quartets
Revendo a extraordinária filmografia de Dovzhenko- Poema do mar, Shchors, Arsenal, Aerograd, Michurin, Ivan... uma conexão: iconografia e ritualismo. A Revolução é um evento que se presta à conglomeração de várias construções rituais: religiosas ( idolatria ideológica do povo), mise en scéne topográfica militar, ascese mítica... Aerograd, Terra, Shchors... mas também o mito das origens, da appartenance romântico à Terra ( a Mãe Rússia) ; e por meio deste raccord atávico e tribalista, acena-nos a velha Reconciliação, mas desfocada: dislexia do faux-raccord, acenando para mundos possíveis, dimensões outras, mas seqüenciais. A temas potencialmente reacionários, Dovjenko inflinge a crítica das formas: planos que a rigor não se encadeiam segundo uma lógica de correspondência ( atenuação do contracampo como polemos, sinergia dialética), mas da manifestação; parataxe que antecipa/ gesta Straub, Oliveira: planos disjuntos, diagonais e helicoidais que os tornam ainda mais antitéticos, ou antes: irredutíveis uns aos outros, autistas. Grandes demais ( os planos médios e gerais, a pequena encenação dos personagens versus a grande encenação da cultura, país por construir ou mito por gerar) ou pequenos demais ( planos de detalhes que escavam os corpos, desvelam uma profundidade feita de superfícies, as superfícies da superfície) para caber numa cadeia sintagmática causal, narrativa ou dedutiva. Neles, incrustam-se as idiossincracias posturais, gestuais, pantomímicas dos personagens, concebidos como tipos: há uma tipologia fisionômica e figurativa em Dovzhenko que reaproveita os esquemas behavoristas do final do século 19, mas num registro lírico e numa Gestalt mítica; estrutura narrativa (?) episódica ( vinhetas); digressões, digressões, digressões, como em Ford e Barnet, com o qual tem em comum um humor de slapstick e uma orquestração trágico-musical: movimentos de um drama que delineia um stacatto circular e percussivo, entre a crônica rapsódica e o Dies Irae operístico.
ps: anotar filmes cuja possibilidade de descrição e/ou análise é bem problemática, senão impossível: Aerograd, La nuit du carrefour, Le jouet criminel, Retrato de Jason, Central Bazaar...
“- Mas enfim, por que você vai ao cinema?
- Sei lá! Ou melhor, eu acho que sei sim: eu vou ao cinema para ver este mundo e este tempo que contemplaram nossa infância.
- Isto é tudo?
- Não! Quem jamais disse que o começo do mundo equivalia à totalidade do mundo?”
Jean-Louis Schefer, L’homme ordinaire du cinéma
“(...) a imagem da felicidade é inseparável da imagem da redenção. A mesma coisa se aplica à imagem do passado, de que se ocupa a História. O passado é marcado por um índice secreto, que o remete à redenção. Não ouvimos em nós mesmos o frágil sopro de ar, com o qual viviam os homens de ontem? As vozes às quais escutamos não nos trazem um eco de vozes agora extintas? (...) Se é assim, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações passadas e a nossa. Esperavam por nós na terra. “
Walter Benjamin, Sobre o conceito de História.
A abertura de Manila constitui uma cartografia fantasmagórica: fachadas e becos de uma cidade que desperta, ainda envolta nas trevas da noite, entulhada pelos destroços da miséria. Um burgo decadente de comércio predatório que a câmera percorre com o olho mecânico e casual de um autopsista que lança uma vista geral sobre o mapa do corpo antes de se fixar sobre o flanco a ser suturado: um jovem rapaz, em um plano médio frontal, chama a atenção do olho vigilante; e basta a câmera deter-se com atenção, basta apercebermo-nos, através do foco diretivo da câmera, que ele está presente para que o filme nasça, que as cores aflorem, e com elas a ficção: o imaginário de um porvir, um conto por desabrochar; de um documentário monocromático sobre uma cidade depredada entramos no mundo turvo e espectral do melodrama. É ao fantasma que habita este jovem operário que o filme vai dedicar sua transparência epifânica, a suspensão do espaço aterrador da cidade numa clareira de quietude e langor, a reserva de onirismo e utopia que o filme de Brocka vai identificar com a infância, a terra natal e sobretudo com o passado: Ligaya Paraíso, a namorada prostituída que Julio, tal como Orfeu, vai buscar no limbo do Hades.
A montagem abrupta e acidentada de Manila se assemelha, em seus propósitos de apresentar a experiência perceptiva da Cidade como uma arena de trauma e expiação, ao “rough cut” paranóico da recriação de M, dirigida por Losey; porém, ao contrário do rato acossado, maníaco-depressivo do filme de Losey, fixado definitivamente nas malhas de um labirinto cujo dead line o espreita desde o primeiro plano, Julio encontra no filme de Brocka um lugar para o seu passado soterrado: através do uso de flashbacks, da câmera lenta, do fade in em certas seqüências, temos acesso a uma espécie de memorial afetivo do personagem, um pathos que resiste ao naufrágio de tudo o que o circunda. Se a sequência final de Manila é uma das mais sombriamente agônicas da história do cinema- com sua saraivada de campos e contracampos num crescendo de terror en sursis e apocalipse eletrodinâmico que em nada deixa a dever ao apogeu do cinema do corpo em Siegel ou Fulci- é porque assinala a intersecção de dois momentos; primeiro, a entrada do melodrama no domínio do trágico- com a decisão final de Julio, que o perde e o salva em um único movimento- pois, como bem nos ensina Jean Pierre Vernant, “a tragédia apresenta o homem na situação de agir, face a uma decisão que implica todo o seu destino; ele vai escolher o que lhe parece melhor, mas ao fazer esta escolha ele estará necessariamente destruindo a si mesmo, pois seu ato- seu pequeno ato- vai adquirir um sentido totalmente diferente do que ele havia imaginado e voltará contra ele num efeito boomerang.. Este homem, que acreditava fazer o bem, vai aparecer aos olhos dos outros como um monstro ou um criminoso. Há uma ilusão em se acreditar que o homem é senhor dos seus atos, diz-nos o trágico.”
Assim, se na maior parte do filme Julio recorda e espera , a partir do instante em que reencontra Lygaia ele é obrigado a agir. O limbo amniótico do devaneio melodramático é substituído pelo presente absoluto da ação trágica: a intensidade naturalista do clímax final mostra-nos a urgência deste apelo, e que Julio aprendeu as regras do jogo predatório de Manila, e se serve ativamente dele; agora encarna outro papel: de cordeiro sacrificado transforma-se em herói de seu destino, ou anjo vingador. Figuras apocalípticas e/ou redentoras, experiência dos limites e limites da experiência, o ato final e transcendente: dadas todas as cartadas num único e certeiro golpe, resta ao apostador o espetáculo de sua própria imolação.
Mas há um segundo momento, como disse acima. É este que permite a Julio e Lygaia uma derradeira chance, a de inscreverem-se miticamente no espaço do filme, não como mero bedéis de um Destino selvagem ou lances de uma partida determinista como é o caso do M de Losey, aliás. No limiar deste instante de Consumação, temos a visão de uma Fatale Beauté, ou de uma Fata Morgana, miragem da hora da Morte ou Plenitude do Ocaso como Reencontro com as Origens: um close de Lygaia, não por acaso introduzido por um fade in superposto ao rosto aterrorizado de Julio. Sacrifício e Redenção, Fim e Princípio, o círculo trágico da reconciliação. O plano que encerra o filme e nos deixa ancorados no território, acessível apenas às crianças e aos contos de fadas, do presente Eterno, ou da presença que se incrusta no presente de uma imagem icônica, e assim adquire o direito à Eternidade. Jean Louis Schefer faz uma observação significativa: “(...) Assim, a duração das paixões ( o que Kierkegaard chamava o caráter de um homem alternativo) pode apenas ser mensurada pelos vestígios das imagens – não em sua duração cinematográfica, mas pelo poder de que estão investidas em permanecer, repetir-se ou recorrerem. Este caráter é muito próximo do que define a transformação da imagem em um duplo mimético- ou seja, naquela espécie de traço ou garantia de registro que é intrínseco ao movimento de desaparecimento ou de desvanecimento do fenômeno”.
A morte de Julio libera a imagem-fantasma de sua namorada, até então prisioneira de sua experiência subjetiva, e como ela sujeita aos esbarrões e desníveis de um itinerário que, em sua progressão em direção à realização ( o encontro com a mulher), encontra infalivelmente o caminho da Queda. O platonismo de Brocka exige o sacrifício do casal para que estes possam ser eternizados no domínio puramente virtual e idealista das imagens, refúgio da infância. Só assim poder-se-ia realizar o mito romântico de que Kierkegaard detém a formula célebre: “(...) sendo o homem consciência, é portanto o lugar onde o tempo e a eternidade se encontram perpetuamente em contato, onde o eterno irrompe no temporal”. É na porosidade da imagem-efígie de Ligaya Paraíso que estas duas dimensões se esposam e fecundam mutuamente ( ou se canibalizam) : uma pátina de Eterno à decadência, um corpo- e seu arsenal de gestos e retrações- à Eternidade.
O fetichismo da imagem inefável e do mundo edênico que esta pressupõe em Brocka só é possível a partir de um aprofundamento radical da imanência: corrupção, prostituição, balé de Eros e Thanatos. A cidade é o demiurgo desta estratégia irônica - tragicamente irônica, ironicamente trágica- que consiste em vislumbrar a redenção apenas sob o prisma da danação. Insiang, Tinimbang, Makliusap ( um filme curioso, com um argumento muito semelhante à Marquesa d’O de Rohmer/Kleist), Cain e Abel... muitos filmes de Brocka descrevem Paixões de uma mitologia romântica e cristã que aspira à conciliação de uma impossível unidade: a família e o Eros individual, a Inocência e a Corrupção, o Campo e a Cidade, as Origens e o Devir. Manila é provavelmente sua obra-prima por operar no interior destas oposições um deslocamento sutil mas decisivo: o trágico não é apenas o princípio arquetípico do aniquilamento do indivíduo, obstáculo à reconciliação cósmica; em sua contemplação se inscreve também uma imagem que, diferida pelo horizonte da rememoração, é a fonte eterna(finita)mente renovável de fascinação elegíaca.
... Estranho processo o de assistir a filmes nestes tempos: entre trechos de O sangue, de Pedro Costa ( no dvd), me alterno aqui vendo dois Pierre Léon- Li per Li e Le dieu Mozart 2 -, e passei “vista d’olhos” ( bonita e desusada expressão) por Quadrille de Guitry e um curta de Griffith para a Biograph. Ver filmes hoje já é uma operação crítica, porque implica um potencial de montagem; e montagem é, por princípio, a forma através da qual o pensamento- ao menos o pensamento representativo ocidental- se estrutura: linkar, relacionar, articular.
Perdemos a inocência, eis a lição maneirista; mas agora perdemos a inocência da inocência, pois ver um filme é desde sempre ser tomado e retomado por centenas de outros filmes e mediações; não propriamente mais uma experiência no sentido clássico, mas uma síntese esquizo e a posteriori, pois o trabalho ainda só se dá retrospectivamente, como na experiência clássica, mas segundo um devir diacrônico, irregular, ora atropelado ora retardado... recortes de recortes, perceptivos e cognitivos, pois um dado importante nisto é o caráter de collage adquirido pelo próprio tempo: ninguém vê mais um filme do início ao fim, ou do fim ao início- o arché e o telos perderam todo o prestígio. Ninguém tem mais um início e um fim, ninguém mais reencontra ao final do filme o seu início, e nele se reencontra.
...Mas algo me diz que é preciso assumir este caleidoscópio quântico de estímulos sim, mas com a sobranceria e altivez de um velho estóico grego, do cimo de uma colina verdejante... ui! sob o risco da jouissance cinematográfica passar a não se distinguir em nada dos sobressaltos mecânicos e espasmos eletrodinâmicos de um Sonic the Hedgehog... o autômato espiritual.
"(...)The great Czech-born philosopher Vilém Flusser once mused on the difference between a screen wall and a solid wall – for him, the convenient key (like so many mundane, everyday phenomena, of the kind that Gomes also alights upon) to understanding our civilisation and its discontents. The solid wall marks, for Flusser, a neurotic society – a society of houses and thus ‘dark secrets’, of properties and possessions. And of folly, too, because the wall will always be razed, in the final instance, by the typhoon or the flood or the earthquake. But whereas the solid wall gathers and locks people in, the screen wall – incarnated in history variously by the tent, the kite or the boating sail – is “a place where people assemble and disperse, a calming of the wind”. It is the site for the “assembly of experience”; it is woven, and thus a network.
It is only a small step for Flusser to move from the physical, material kind of screen to the immaterial kind: the screen that receives projected images, or (increasingly) holds computerised, digital images. From the Persian carpet to the Renaissance oil painting, from cinema to new media art: images (and thus memories) are stored within the surface of this woven wall. A wall that reflects movement, but itself increasingly moves within the everyday world: when I was a little child and once dreamed of taking a cinema screen (complete with a movie still playing loudly and brightly upon it), folding it up and putting in my pocket so I could go for a stroll, I had no idea it was a predictive vision of the future, the mundane laptop computer or mobile phone.
For a long time, cinema has seemed to be inextricably wed to the solid walls of halls, theatres, cinematheques, and now hi-tech home theatres. Wed to dark rooms and their Gothic dark secrets, to assemblies and pre-programmed public events. Our Beloved Month of August, in its own, remarkable vision of an ‘expanded cinema’, a cinema of multiple panels or screens interacting in space and time, frees the viewers’ minds and lets their emotions roam: through documentary and fiction, through music and travelogue, through drama and comedy, through the plaintive directness of eternal pop culture and the Baroque convolutions of modernism and postmodernism. Of course, it is literally not a museum installation, not a new media piece. It’s an old-fashioned film that gets projected from start to end in a linear fashion, that truly takes you on the passionate journey that every, lesser movie promises to do – but also manages to multiply that journey and the entry-points that we, as spectators, take into it. "
Adrian Martin
Só uma nota, a desenvolver: Welt am Draht talvez seja o ( belo) filme de Fassbinder que mais radicalmente nos questiona acerca da possibilidade de um ponto de vista da coisa sobre o mundo: é possível à reificação engendrar fantasmagorias? Velha questão da superestrutura, que assombrou o expressionismo, quando o homem finalmente se percebe visado e representado como objeto pelo mundo, inversão cognitiva e perceptiva que nubla- borra- de cacofonias a evidência cristalina do mundo capitalista: exéquias do sujeito, cauterização do mundo.
A "coisa” ( que não é das ding) é agora, naturalmente , o cérebro-máquina, o autômato espiritual elevado à condição de autônomo cibernético, o computador. Mas a “coisidade” habita também- como sempre em Fassbinder- estas grandes e soturnas bonecas maneiristas, veladas de rouge à lèvres e submersas num torpor vegetativo, de que Martha- a esquizo e espectral boneca sado-masoquista- constitui uma espécie de transcendental. Em Welt, é o homem de negócios quem é perseguido e castrado: eficiente e fatalista, paranóico e diligente, um fruto bem polido do Milagre econômico e da má consciência que o Milagre recalcou- criei este monstro e ele me recria? ; como o senhor Amok, é um monstro que nos espreita entre o café e a chacina, o escritório e o manicômio, a meio caminho. Aqui como ali jamais aspiramos a uma impossível síntese, permanecemos estilhaçados e à bout de souffle: a esquizofrenia é o preço a se pagar pelo establishment. Aqui- ao contrário do senhor Amok, e como em toda a obra de Fassbinder-, o estigma do ser coisa se encarna na mulher, a marionete de cristal, a spinto de kammerspiel, a Puta babilônica do Wirtschaftswunder, que trafica influências e máscaras como o nazista traficou cadáveres e Adenauer marcos. Este demônio- que Margit Cartensen representou como ninguém, faux-raccord materializado no estrabismo esnobemente adunco do olhar- , torturado e expiado por Fassbinder toda a sua vida, aqui mostra sua face mais sub-reptícia e venal: as mulheres povoam os recantos do plano, deslizam por entre os interstícios dos tempos mortos, corroem e minam toda superfície - a superfície de macho civilizado, a superfície plana e catatônica da vitrine capitalista, a superfície da superfície nas panorâmicas ondulatórias e espiraladas do prestidigitador de fantasmas ; são as acólitas secretas da paranóia, as estafetas do iminente Apocalipse, que ronda...
Tudo em Monteiro, como em Lautréamont, nasce da pulsão. A metamorfose, o princípio plástico e ontológico de seu cinema, é carnívora: transformar-se num Outro é digerir e assimilar-lhe a Persona- trocar de máscara-, e assim centuplicar a própria força; é instilar no predador a centelha do divino, como na mística de certas tribos canibais: Devoro-te ou decifra-me. Uma espécie de féerie do demoníaco: a única transfiguração possível a um herdeiro de Stroheim e Buñuel.
Revendo a pérola Lírio partido, pensando em Lang, Tourneur e na posteridade do que nas origens se avizinha do fim...Um maëlstrom de fúria que se abate sobre um cubículo, um titã sobre um lírio... Concentracionismo do melodrama vitoriano: posições e oposições do opressor – no centro do quadro, ou à direita- e do oprimido, abaixo do quadro ou recostado contra seus limites, geralmente à esquerda: esmagado ou entrincheirado. Toda uma ontologia e deontologia ligadas à superfície material do plano, este campo randômico de forças que se encarniçam em ocupar o centro do quadro, e neste ( por este) o podium da arena; expansão irrefreável da força, centrífuga e centrípeta irrupção da Morte, rajada de Nihil que propulsiona a criatura para os limites indevassavelmente recuados do fora de quadro, reserva da memória e da imaginação, onde ainda podemos retê-las, resguardá-las, mas apenas in memoriam, trop tôt, trop tard, o tempo de um contracampo- que aliás não vem, nem virá nunca, pois já não há a quem cor-responder ou contemplar.
Por mais que eu queira deixar de ser o centro, nunca posso colocar-me do ponto de vista de Sírius, que seria o único e o verdadeiro.
Karl Jaspers
O espelho reflete: que se é. O inefável se mostra: hic et nunc. Mas a câmera espelha o espelho, ela magnifica sua potência de revelateur: como o espelho, é uma superfície que reflete superfícies, corpos feitos de luz e de sombras, volumes, texturas; mas ao contrário do espelho- e nisto ela o excede e o enquadra, cadre do cadre- ela apreende- não: entreolha- os corpos conservados no líquido amniótico da presença, o tempo. O espelho pretende ser uma imagem do Eterno, ou capta a imagem como um estigma do Eterno, vetustez do retrato de família e do cerimonial galante ; logo, nos apresenta uma imagem falseada ótica e ontológicamente: fazemos pose para o espelho, aprendemos a encenar , a mentir diante do espelho ( com). A nos fixar e nos eternizar diante do espelho, e nos eternizar em um determinado papel, um certo Ego. A morrer, portanto. O espelho é o anátema da presença; nele, o humano se afirma e se exalta às custas da exclusão do horizonte de todo sendo ( das in-der-Welt-sein),o tempo.
Alfreda jamais conseguirá ver a Virgem Maria enquanto tiver a si diante do espelho; se tivesse olhos para ver, como nós- que não vemos o que o espelho nos oferece, mas o que a câmera nos vela-, veria o que lhe aparece- às expensas dela- em quase todos os planos do filme: a viração, a luz e a sombra brincando sobre os corpos, um fiapo de música ao longe. Não exatamente o divino - interdição suprema no judaísmo e no cinema, sobretudo o divino frontalmente, face a face- , mas o único milagre que nos será dado presenciar sobre a terra: parafraseando Hölderlin, o rastro do desaparecimento do divino, o que o divino deixa para trás, ao retornar ao escaninho do Nada. Este evento se oferece a quaisquer, não necessariamente o homem, basta ter olhos para ver: um olho mecânico por exemplo, mas fixado no tempo e no espaço absolutamente necessários para testemunhá-lo; como dizia Monteiro: só há um ponto onde colocar a câmera, e é este ponto que é preciso descobrir. Ia falando... ah , sim, o rastro da ausência do divino: abundância de significantes sem significado no cinema de Oliveira, plenitude gloriosa- numinosa?- do signo justamente porque não atrelado ao escopo do simbólico ( Signos banhados na luz gloriosa de sua ausência de explicação, etc)
A câmera vê mais e melhor que o espelho: vê tudo, justamente na medida em que se sabe ( nós a sabemos) finita, contigüidade dos pontos de vista e de treva: um Todo feito sobretudo de partes, em sincrônica e sucessiva ordem.Vê tudo por não aspirar– como o espelho- a de tudo se apoderar e submeter à autarquia do Ego, seus brasões de família: o selo do Olvido e da dissolução. E se o espelho merece o status de uma visão verdadeira- de uma vidência- é quando vira uma câmera, como na projeção final das imagens de Veneza.
O que é merece ser eternizado, mas somente enquanto situada numa rosa dos ventos temporal, pretérito imperfeito do subjuntivo, jamais totalmente presente, em vias de passar e advindo de: “Sempre te amei”, diz a mulher ao marido. Mas era como se fosse para depois. Para toda a vida. E eu cuidava que era muito cedo para começar a eternidade”. A câmera faz justiça ao que é, dá-nos uma visão justa, mostrando-o ao mesmo tempo como o que foi e o que será. A justa visão, a visão dos justos: se tivéssemos olhos para ver, veríamos o que Alfreda talvez apenas tenha podido ver à hora em que seus olhos se entrefechavam para sempre; mas aí já não o pôde dizer, e levou o segredo consigo, como é de praxe em toda sessão de camara obscura, prestidigitação, sessão espírita ou projeção de cinematógrafo: levar o segredo consigo.
Se pudéssemos ver como a câmera, que registra apenas as pegadas, o que ontem não era e amanhã talvez não seja mais, veríamos: que toda entrada e saída de campo equivale a uma retração e a uma plenitude de ser, a uma efeméride e uma Eternidade; que todo sorriso é uma epifania, e toda comemoração o átrio da ruína. Aliás...Alfreda , sem o saber ( pois ainda não sabia ver, ao menos de forma justa, conforme ao transitivo do divino), assiste a uma aparição da Virgem: é Marisa Paredes, velha e enlutada virgem, que entra e sai do campo ao fundo, transparência que se esfuma na distância da luz e do tempo; e a profundidade de campo nos sugere que muitos poucos, talvez alguém dotado de uma monstruosa hipermetropia espiritual, poderia tê-la visto, antes de se encaminhar para nós, e assim adquirir os contornos de uma figura , um presente, inspirando ao nosso olhar horizonte e foco. Não, não, era uma miragem...O que é que a mulher fala mesmo à “aparição” em seu leito de morte? “Parece que foi no jardim. Lembro-me de si e depois não lembro. Havia árvores em flor, e o chão em volta delas estava cor de ouro.”
Ps: Espelho mágico, como em Track of the cat ( o morto na cova) e Vampyr ( o morto a caminho da cova), nos dá um ponto de vista impossível, limítrofe: refletido no espelho, transformado agora numa câmera, o olhar de uma mulher em coma passeia por recantos outrora amados, o teto de um hotel em Veneza, o Horto das Oliveiras...Vemos por ela, nela: ou somos vistos? Manoel de Oliveira consegue o estranho ( demiúrgico) prodígio de dotar o inanimado de uma aura ( vide tantos planos enigmáticos de estátuas e objetos, ao longo de sua obra), a Morte inclusa: de conferir ao mundo, silenciado pela ausência do divino, o poder de voltar os olhos para nós, e igualmente ver.