sexta-feira, 30 de julho de 2010

Espelho mágico







Por mais que eu queira deixar de ser o centro, nunca posso colocar-me do ponto de vista de Sírius, que seria o único e o verdadeiro.


Karl Jaspers



O espelho reflete: que se é. O inefável se mostra: hic et nunc. Mas a câmera espelha o espelho, ela magnifica sua potência de revelateur: como o espelho, é uma superfície que reflete superfícies, corpos feitos de luz e de sombras, volumes, texturas; mas ao contrário do espelho- e nisto ela o excede e o enquadra, cadre do cadre- ela apreende- não: entreolha- os corpos conservados no líquido amniótico da presença, o tempo. O espelho pretende ser uma imagem do Eterno, ou capta a imagem como um estigma do Eterno, vetustez do retrato de família e do cerimonial galante ; logo, nos apresenta uma imagem falseada ótica e ontológicamente: fazemos pose para o espelho, aprendemos a encenar , a mentir diante do espelho ( com). A nos fixar e nos eternizar diante do espelho, e nos eternizar em um determinado papel, um certo Ego. A morrer, portanto. O espelho é o anátema da presença; nele, o humano se afirma e se exalta às custas da exclusão do horizonte de todo sendo ( das in-der-Welt-sein),o tempo.


Alfreda jamais conseguirá ver a Virgem Maria enquanto tiver a si diante do espelho; se tivesse olhos para ver, como nós- que não vemos o que o espelho nos oferece, mas o que a câmera nos vela-, veria o que lhe aparece- às expensas dela- em quase todos os planos do filme: a viração, a luz e a sombra brincando sobre os corpos, um fiapo de música ao longe. Não exatamente o divino - interdição suprema no judaísmo e no cinema, sobretudo o divino frontalmente, face a face- , mas o único milagre que nos será dado presenciar sobre a terra: parafraseando Hölderlin, o rastro do desaparecimento do divino, o que o divino deixa para trás, ao retornar ao escaninho do Nada. Este evento se oferece a quaisquer, não necessariamente o homem, basta ter olhos para ver: um olho mecânico por exemplo, mas fixado no tempo e no espaço absolutamente necessários para testemunhá-lo; como dizia Monteiro: só há um ponto onde colocar a câmera, e é este ponto que é preciso descobrir. Ia falando... ah , sim, o rastro da ausência do divino: abundância de significantes sem significado no cinema de Oliveira, plenitude gloriosa- numinosa?- do signo justamente porque não atrelado ao escopo do simbólico ( Signos banhados na luz gloriosa de sua ausência de explicação, etc)


A câmera vê mais e melhor que o espelho: vê tudo, justamente na medida em que se sabe ( nós a sabemos) finita, contigüidade dos pontos de vista e de treva: um Todo feito sobretudo de partes, em sincrônica e sucessiva ordem.Vê tudo por não aspirar– como o espelho- a de tudo se apoderar e submeter à autarquia do Ego, seus brasões de família: o selo do Olvido e da dissolução. E se o espelho merece o status de uma visão verdadeira- de uma vidência- é quando vira uma câmera, como na projeção final das imagens de Veneza.

O que é merece ser eternizado, mas somente enquanto situada numa rosa dos ventos temporal, pretérito imperfeito do subjuntivo, jamais totalmente presente, em vias de passar e advindo de: “Sempre te amei”, diz a mulher ao marido. Mas era como se fosse para depois. Para toda a vida. E eu cuidava que era muito cedo para começar a eternidade”. A câmera faz justiça ao que é, dá-nos uma visão justa, mostrando-o ao mesmo tempo como o que foi e o que será. A justa visão, a visão dos justos: se tivéssemos olhos para ver, veríamos o que Alfreda talvez apenas tenha podido ver à hora em que seus olhos se entrefechavam para sempre; mas aí já não o pôde dizer, e levou o segredo consigo, como é de praxe em toda sessão de camara obscura, prestidigitação, sessão espírita ou projeção de cinematógrafo: levar o segredo consigo.



Se pudéssemos ver como a câmera, que registra apenas as pegadas, o que ontem não era e amanhã talvez não seja mais, veríamos: que toda entrada e saída de campo equivale a uma retração e a uma plenitude de ser, a uma efeméride e uma Eternidade; que todo sorriso é uma epifania, e toda comemoração o átrio da ruína. Aliás...Alfreda , sem o saber ( pois ainda não sabia ver, ao menos de forma justa, conforme ao transitivo do divino), assiste a uma aparição da Virgem: é Marisa Paredes, velha e enlutada virgem, que entra e sai do campo ao fundo, transparência que se esfuma na distância da luz e do tempo; e a profundidade de campo nos sugere que muitos poucos, talvez alguém dotado de uma monstruosa hipermetropia espiritual, poderia tê-la visto, antes de se encaminhar para nós, e assim adquirir os contornos de uma figura , um presente, inspirando ao nosso olhar horizonte e foco. Não, não, era uma miragem...O que é que a mulher fala mesmo à “aparição” em seu leito de morte? “Parece que foi no jardim. Lembro-me de si e depois não lembro. Havia árvores em flor, e o chão em volta delas estava cor de ouro.”


Ps: Espelho mágico, como em Track of the cat ( o morto na cova) e Vampyr ( o morto a caminho da cova), nos dá um ponto de vista impossível, limítrofe: refletido no espelho, transformado agora numa câmera, o olhar de uma mulher em coma passeia por recantos outrora amados, o teto de um hotel em Veneza, o Horto das Oliveiras...Vemos por ela, nela: ou somos vistos? Manoel de Oliveira consegue o estranho ( demiúrgico) prodígio de dotar o inanimado de uma aura ( vide tantos planos enigmáticos de estátuas e objetos, ao longo de sua obra), a Morte inclusa: de conferir ao mundo, silenciado pela ausência do divino, o poder de voltar os olhos para nós, e igualmente ver.


Nenhum comentário: