sexta-feira, 30 de julho de 2010

Notas Manoel de Oliveira






Grande parte da singularidade do cinema de Oliveira vem de um uso bem particular e incisivo do contracampo. Ou uso nenhum, escasso uso, sobretudo nos últimos filmes, ou nos filmes com planos seqüência: Benilde, Quinto império, Singularidades, Espelho mágico. Nesses filmes, recita-se ou presenta-se, mas sem réplica: os personagens habitam dimensões diferentes no mesmo plano, e o "estrabismo" da personagem de Leonor Silveira em Singularidades de uma rapariga loira– a negação do raccord materializado na recusa de um corpo e de um olhar a refletir o outro, a representá-lo, e portanto em consentir no pacto da narrativa e da farsa que esta encena , quando contada pela vítima do logro- é anunciado por posições- retrações- semelhantes em Espelho mágico, Princípio da incerteza, Dias de desespero. Em filmes em que o contracampo significa efetivamente- índice de-, um buraco negro se abre no filme; é um índice, ok, mas negativo: sinaliza a entropia do sentido, ou a impossibilidade de demarcar um único, de exprimi-lo portanto, o caráter amorfo e irredutível do ser à expressão ( anti-expressionista?).

Dou um exemplo lancinante que me vem à cabeça: Michel Picolly contempla uma ninfa pela qual se apaixona à beira do mar, em Party ( ainda Leonor ilveira, mulher que con sua dicção contrapuntística em stacatto, mostra que Brecht é belamente possível no tablado de uma língua lisboeta). Corte para as pedras acariciadas pelo marulho das águas, mas sem ninfa. Novamente o plano do homem, desnorteado, e em seguida um plano subjetivo que inventaria- uma pan- o espaço da cratera que se abriu no filme: teria ela se afogado? Ou seria realmente uma aparição?

Em Inquietude, o amante de uma prostituta fin-de-siècle contempla a mulher tocando piano, e entre o plano em que a câmera espera por ela- que se levanta para ir de encontro ao piano- e anseia por sua volta tardia, temos uma necrose do tempo que, cinco minutos depois, vai nos levar à visão da mulher metamorfoseada numa deusa ( mortuária) de Poussin, derreada para trás- outra, morta, passada, mas eternizada como efígie- enquanto em off o homem lhe dedica um poema fúnebre...O espaço, o tempo, a percepção centralizada e centralizadora que neles se ancorava, a percepção do mundo como uma instância única e absoluta que se dá ao homem- e se dá integralmente, na fulminação do plano-, e que o homem se assegura de fixar e reter... onde estão? Onde o mundo, onde o homem, onde a vida cálida e enamorada, onde o Eu? Contracampo como nota de rodapé da situação ou Nesga apocalítpca, rachadura de uma inominável Angst que finalmente aflora à superfície- mesmo que de soslaio, como em todo grande ironista-, e neste instante decisivo ameaça arrastar tudo consigo... o cinema é uma série de signos banhados na luz magnífica de sua falta de sentido. A barbárie que espreita sob a fímbria de toda civilização, o caos sob todo cosmo, o milagre sob o jogo de interesses- xeque mate...

Oliveira, com Renoir e Buñuel, é dos diretores chave para se abordar este paradoxo fundante de se representar no cinema uma visão crítica do conceito de civilização: como uma arte de superfícies pode se arrogar o poder de encenar um jogo de máscaras, de superfícies que remetem a outras superfícies, mas verticalmente, profundidade superficial que Marivaux e Musset, com seus vaudevilles espiralados e clins d’oeils entre uma réplica e outra- a réplica é o rodapé do teatro clássico francês- souberam, se não capturar, ao menos sugerir, com uma piscadela maliciosa...o cinema suporta no máximo a apresentação de uma superfície a cada vez, um estado de coisas pontual, um gesto que a tudo o mais cristaliza, mas precisamente aqui e agora: uma arte da sucessão, que suporta com dificuldade superposições, analogias; portanto, repugna-lhe um tanto a metáfora e absolutamente o símbolo. O contracampo é a piscadela de Oliveira, é a escapada deste aqui e agora, deste sintagma do plano, e do absoluto que nele se apresenta, o absoluto que é o ponto cego da retina onde toda ideologia burguesa se abrigou: a negação das passagens e transições, dos interstícios, do clin d'oeil, a manutenção de um estado de coisas- estados de coisas- pelo fetiche do rito.

Oliveira- um moralista do século 18 mascarado de satirista picaresco do século de ouro, mascarado de insurrecto da Comuna, mas apenas nas horas vagas, depois da taberna-, mostra-nos ( mas de fresta, entreabre-nos a porta) que o jogo não é tão simples, as cartadas se multiplicam, e com elas as máscaras, a civilização é apenas o efeito de superfície de tantas outras superfícies bárbaras, e basta inverter uma ou duas regras, inventar um terceiro ponto de vista, e a virtude transmuta-se em corrupção, o vício conduz por um atalho à santidade...a risada final de Camilo diante do túmulo ( risada? já não me lembro bem) em Dias do desespero é a sobranceira mirada sobre a natureza movediça- sarabanda e redemoinho, jogatina e fliperama- de todas as aparências...

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