sexta-feira, 30 de julho de 2010

11 x 14, Benning





Merleau-Ponty disse uma frase seminal, não só em matéria de fenomenologia mas fundamental para uma arte materialista como o cinema: nós não temos um corpo; somos um corpo. A rigor, basta mostrar um corpo- evidentemente, sob certas condições de controle: luz, posição no plano, duração-para que tenhamos acesso a uma vasta gama de histórias a contar ou a ocultar, afetos potenciais ou atuais, vidas e mortes, devires. Em cinema, quem conta e reconta, transita e hieratiza é a matéria. 11X14, belo filme de James Benning, faria uma bela sessão dupla com News from home, de Chantal Akerman; ambos partem de presuspostos estruturalistas para chegar, pela mera concentração no corpus do plano e do tempo que o habita, a um verdadeiro reservatório de ficções em potencial, de musica e drama esperando apenas o ponto exato – do corte, da variação na luz, do gesto- para se atualizarem em narrativas. Cada plano de 11X 14 contém uma virtualidade dramática; no primeiro plano ( fixo, como a maioria, com exceção de alguns travellings) , um homem espera por alguém. Assoma um carro no plano, o homem entra no carro, que sai do campo. Pra onde vão? Em outro plano, uma mulher, merghulhaa na semi-obscuridade e filmada em três quartos de perfil, é transitada pelas paisagens – passagens- do trem onde se encontra. Levanta, inflete a cabeça, a escuridão s e concentra e se dispersa segundo a variação de seus movimentos; aqui não há mero registro, mas encenação: chiaroscuro, deslocamentos espaço-temporais,feeling. Temos diteito até a uma paródia hitchcockiana: em primeiro plano, à esquerda, uma mulher lava louça; à direita, sentado à mesa e quase chutado para fora do campo, um homem. Ao fundo, uma mulher que troca de roupa delineia sombras sobre a parede, estridentemente. E com três planos, a aparição de uma mulher de blusa vermelha estria o filme com uma micro-narrativa: ela bebe café em primeiro plano; na tv ao fundo, Dorys Day versus Desi Arnaz, separados por uma vertical e uma ligação telefônica, o kitsch middle class para entomologistas de fino trato. No segundo, ela estaca em um plano médio dentro do carro, hesita, sai. No terceiro, acaricia uma Maja desnuda de costas para a câmera, com a mesma indefectível caneca de café na mão. Inervações entre o corpo e o cenário, caráter, diário íntimo em três descontínuos flashs.

O grande mestre de cerimônias deste work in progress que consiste em se servir – intensiva, exaustivamente-do tempo e da presença como vetores de fabulação é Andy Warhol, e seus melhores intérpretes no cinema contemporâneo são Benning, Gallo, Van Sant ( sobretudo em sua obra –prima, Last days). 11 X14 se concentra e se distende não apenas sobre corpos humanos(ou deveria reiterar o termo presenças, ao invés de corpos, para dar a dimensão temporal de tudo?), mas tantos quanto são possíveis ativar como campos ( foras de campo) de reserva ficcional: planos de vacas num rural sugerem um western por-vir; ou uma corrida de carros em plano geral me lembra Two-lane blacktop. Em geral, o filmes se divide em planos-cenários, de ficções a serem desenvolvidas, experimentos de campo; e planos que nos colocam no centro de uma diegese já em ação, mas à qual não assistimos o começo nem veremos o fim, pois o filme se estrutura – um pouco à maneira dos strob cuts de alguns filmes de Warhol- sobre uma concepção serial da durée: o corte abrupto transforma o plano num instantâneo, num devir castrado pelo tablóide do gesto.

É sempre bom lembrar a frase de Daney que fala que o cinema americano se caracteriza por ficcionalizar tudo; acrescento: mitificar tudo. Cada plano de 11 X14- e a ficção aqui se resolve figurativa e temporalmente no plano, não na sequência; não no encadeamento causal das ações, mas no filigrana de seu rastro-- é o portal de um melodrama de chambre ou de uma aventura autour de ma chambre. Mas há também paisagens, largos e reticentes horisontes de encontros- as mulheres que se fotografam diante do Monte Rushmore, os golfistas do último plano-, e é nesta parábola tridimensional que o citadino e o campestre imprimem ao doméstico e ao casual que colidem- coincidem- as dimensões diegética e extra-diegética, documental e encenada de 11 X14: quando os personagens, nos planos supracitados, estão em primeiro plano, se adequando e se amoldando ao esquadro voyeur da câmera, eles encenam ( ficção); mas quando se distanciam do foco, quando impõem à Diegese carnívora da Proximidade a Distância de um corpo circunavegante e transitivo, fugindo do primeiro plano– ou mesmo, no caso dos jogadores de golfe, saindo do campo- temos o retorno do registro, do anódino e casual: Lumière, Méliès, Méliès, Lumière. Neste jogo entre um plano epidérmico e um planalto onde se perdem de vista os objetos de escrutínio de uma América do Meio-Oeste, temos a experiência do espaço e do tempo autônomos- libertos- das criaturas, enfim infensas ao compasso unidimensional do foco.

Ps: corpos humanos e inumanos em cinema... desníveis, interações... os corpos de animais ou paisagens não contém história- e, portanto,a princípio, não possuem uma história para contar-, ao contrário dos humanos. Mas, à semelhança dos humanos, eles deixam rastros, vestígios. 11, 14 é um inventário destes vestígios- comuns tanto a corpos humanos quanto inumanos, e se o raccord fosse algo significativo para o cinema de Benning- enfim,a articulação espaço-temporal entre planos-, teríamos um grande pequeno épico- um pequeno grande épico- sobre os ritmos da vida cotidiana, as aventuras e desventuras infinitesimais- só registradas por nosso id, au bout de la nuit- de transitar por uma grande cidade, sendo abordados e abalroados por outros corpos, sólidos ou imateriais: os reflexos da luz, as vibrações da música ( Bob Dylan, no caso), as evaporações da água, os trânsitos da linguagem e do silêncio.

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