sexta-feira, 30 de julho de 2010



Acossada, escrutinada, verificada, testemunhada: McCarey coloca Lucy, a consciência desencantada deste teatro de boulevard de posições e contraposições deontológicas no plano, no centro de uma série de planos-arena: a câmera parece a princípio se acumpliciar com a mulher, aconchegá-la sob o invólucro da lente, auscultá-la. Mas finalmente o bisturi reassume sua função de autopsista, e recua: então, temos o Panem et circenses. Lucy agora é o objeto de uma operação- uma série- de dissecação de um gesto e de uma trajetória- um caráter-, trajetória esta cujos ecos esmaecidos chegam a nós sob a forma de signos até então reservados ao quiproquó ídiche, ao vaudeville reumático e renitente do velho teatrão americano off-Broadway, ao ghetto da existência: dois velhos rabugentos, que só se reúnem na primeira e última sequências, mas que poderiam ser o núcleo de um entr'acte romanesco, o último bastidor- se a eles e a nós fosse dado, fosse dom- ser a fonte de uma revitalização da experiência num mundo em que a experiência foi arruinada pela entropia do capital: a Depressão. A câmera, neste destilado de rito sacrificial e crônica de massacre- cada cena se empenha em reiterar a impossibilidade do casal pertencer à seqüência, se entrincheirar no plano, e finalmente ter um espaço e um tempo na vida dos filhos, os metteurs en scéne dialógicos das estropiadas presenças dos pais-, desempenha o papel, caríssimo a todo melodrama, de ser o juiz e o confessor dos personagens; neste vai e vem em direção à Lucy, a câmera histrioniza seu egoísmo e matiza o nosso opróbrio, faz-nos testemunhas e algozes em um único movimento. Tchékhov, McCarey e Ford, velhos novos herdeiros da máxima de Horácio: Nada do que é humano me é estranho. Câmera carrefour, contracampo-recitativo, irreconciliação taquigráfica que vai respingando pela duração de A cruz dos anos todas as perdas e fraturas que jamais ousaríamos mostrar para nossos pósteros, se alcançarmos esta dádiva: no baile final do casal, a sutura da fratura? O plano-arena ainda os intimida, quando entram no hotel ( Aurora de Murnau nos lembra alguma coisa?), mas logo é dissipado pela gentileza do maître d’hôtel, pela circunspecção dos pares dançarinos, o plano respeitoso do casal que dá as costas à câmera e, enfim, conquista uma provisória infinitude: Lucy acaricia o colar que o amante rememora, presente presente enfim... Quoi?- L’eternité.Quando McCarey nos deixa a sós com uma desconcertada, hesitante, dissipada, e finalmente apaziguada Lucy, que abandona o plano em direção à Morte, nós sabemos... ou saberemos, a qualquer dia, qualquer noite, qualquer hora, que a Memória é espessa fímbria de Anima, e resiste a qualquer fora de quadro e de campo: proximidade absoluta e inexpugnável, istmo de luta e de luto. Não é a esta separação absoluta, a este casulo de secreto acalanto e encanto, que reservo para a cripta do túmulo- e do fora de campo- que se referiam os gregos quando falavam em ιερος, ou sagrado?

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