sexta-feira, 30 de julho de 2010

Beatrice Cenci, Freda



Um ensandecido travelling acompanha uma corça adolescente em fuga: raios, um castelo elizabetano ao fundo, o cavaleiro que a persegue, e esta coalescência da profundidade de campo, ondulante istmo de treva, que absorve e restitui ao alto-relevo do plano a criatura evanescente, um fantasma de melodrama cujo cortejo, ao longo desta obra prima- trata-se da Beatrice Cenci, de Riccardo Freda- vai desfilar uma série de tableaux tridimensionais: da sonatina dos amantes nos porões à festa dos cortesões na sala de jantar, do encontro do casal incestuoso que planeja se livrar do algoz à sala de interrogatório onde Beatrice é imolada, tudo é liturgia, rito. Exemplo: a mulher vai envenenar a carne a ser servida ao marido. Ela é enfocada em um plano médio, diante da mesa da cozinha; o criado entra pela porta dos fundos, aproxima-se da mesa, e com ele a câmera. O homem demonstra desconfiança, olha a patroa com impertinência, mas o importante a reter é que a aproximação da câmera nos oculta o saco de veneno que a mulher tinha na mão. Quando o criado se afasta, a câmera recua e voltamos ao plano anterior; a proximidade da câmera enjaula a personagem no jogo social, no papel a desempenhar diante do Outro. Ou então o contrário, desvela o interdito: quando o pai de Beatrice a ajuda a despir-se no quarto; o plano geral que os enquadrara até então é estreitado por Freda num plano médio que revela a inspeção erótica do corpo da filha pelo olhar do pai. Francesco arremata o significado da cena com um “Você me lembra sua mãe, quando jovem. Depois, ficou feia e triste”. Beatrice se encaminha para a direita do plano, fugindo à insidiosa proximidade do pai, e a câmera recua até reenquadrá-la, semi-nua e cabisbaixa, diante do velho, que permanece postado à esquerda, contemplando, numa autocrática distância de marchand, a natureza-morta entalhada na moldura do plano. A face de Jano dos grandes melodramas- a decomposição trágica de um cosmo, a deriva agônica das criaturas- aparece neste jogo cambiante, estabelecido pela mise en scéne de Freda, entre êxtase e cálculo, cerimonial e intermezzo lírico, Sturm und Drang e Requiescat in pace.



Ps: comparando, comparando, sem comparar...Visconti que me perdoe, mas jamais dirigiu- com exceção talvez de Senso- um filme com a graça, a sobriedade classicista e o olho clínico da mise en scéne de Freda. Tudo me parece tão pesado e demonstrativo depois de Beatrice Cenci!

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