sexta-feira, 30 de julho de 2010

Méliès e a epilepsia




(...)" Filmar o que não existe, dizem alguns especialistas anglo-saxões de efeitos especiais. No fundo, isto é inexato, pois o que eles representam existe, de um modo ou de outro; é a velocidade na qual filmam o que não existe, esta pura invenção da máquina cinematográfica: os efeitos especiais, ou melhor dizendo, os "truques", este termo tão pouco acadêmico ( como ironizava Méliès, "o truque, aplicado com inteligência, permite-nos hoje fazer visível o sobrenatural, o imaginário e até mesmo o impossível).
Os grandes produtores da época reconheciam que Méliès, ao separar o cinema do realismo dos "temas ao ar livre", que certamente haviam cansado rapidamente o público, havia feito nada além de manter este realismo. Méliès assinala: "Para mim, devo admitir que os truques mais simples são os que produzem maiores efeitos". Convém recordar aqui como inventou este truque tão simples que, segundo ele, encantava o público.
"Um dia em que filmava com desinteresse la praça da ópera, uma interrupção na máquina que estava usando produziu um efeito inesperado: necessitei de um minuto para desbloquear a película e tornar a pôr o aparelho funcionando. Durante este tempo, os transeuntes, ônibus e coches haviam mudado de lugar. Quando projetei o filme vi prontamente que um ônibus Madeleine-Bastille se havia transformado em um carro fúnebre, e os homens em mulheres. Havia descoberto o truque por substituição, o chamado truc à l'arrêt, e dois dias depois intentava as primeiras metamorfoses de homens em mulheres".

Os acasos tecnológicos haviam recriado as circunstãncias "desincronizantes" da crise picnoléptica ( formas brandas de crises epléticas, caracterizadas por "ausências"), e Méliès, ao delegar à máquina o poder de romper a série metódica dos instantes filmados, atuou como a criança, que embaralha a sequência temporal e suprime assim qualquer corte aparente da duração; só que neste caso, o "branco" ( ou ausência) foi tão prolongado que o efeito de realidade se modificou substancialmente.

(...) Tempos depois dos experimentos da cronofotografia de Marey, o ilusionismo de Méliès vai buscar nos desorientar muito mais intensamente que o rigor metódico do discípulo de Claude Bernard; enquanto um nos oferece um discurso cartesiano ( "os sentidos nos enganam"), o outro nos convida a comprovar que "nossas ilusões" não nos enganam mentindo-nos sempre" ( La Fontaine). O que a ciência intenta atualizar, o "não visto dos instantes perdidos", se converte para Méliès na própria base da produção da aparência, de sua invenção. O que ele mostra da realidade é aquilo que reage constantemente frente às ausências da realidade que passou. é o "entre dois" das ausências o que torna visível estas formas que Méliès qualifica como "impossíveis, sobrenaturais, maravilhosas". Mas os desenhos animados de Emile Cohl, por exemplo, baseados na transformação, nos mostram , ainda mais claramente, até que ponto estamos ávidos por perceber formas maleáveis, de introduzir uma perpétua anamorfose na metamorfose cinematográfica".


Paul Virilio, A estética da desaparição.



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