sexta-feira, 30 de julho de 2010

Três planos de La vie est comme ça




Curto e grosso: La vie est comme ça, Brisseau. Plano 1 distanciado, neutro? Definitivamente, não. Monsieur Duclerc, simpático concierge , nos conquistara uma seqüência antes , ao convidar Agnes ( Lisa Heredia) e Marie Dubois, locatárias do prédio que ele administra com mão solícita e ternura feminil, para jantar. Adorável velhinho. Portanto, nem Brisseau, naturalista avant la lettre e moralista avant tout, tinha o direito de deixá-lo entregue à sua sorte, de se livrar dele. É um plano subjetivo ( que vai se revelar subjetivo ao menos, quando Agnes entrar no campo): é ela quem, escondida atrás da porta armada de um bastão, se livra dos agressores ( ao que me lembre, não há corte) com uma paulada certeira.

Suspiramos, aliviados. Aliviados? Sigamos. Ao final do filme, (perdoem-me por contá-lo, mas isso importa a alguém? Se a alguém, a quem?), o preço a pagar: Lisa se mata. Brisseau a mata (ela se suicida); na intercalação de um plano geral com um close de seu corpo ensangüentado que nos fazem assistir à comunhão de Hitchcock com Fulci, uma brusca noção de substituição se opera: Brisseau poupara ao velhinho àquela altura do filme , uma vez que o percurso de Lisa ainda iria se efetivar- de sujeito político a objeto erótico e massa de manobra. Nós seríamos suas testemunhas, asism como testemunhas do iminente assassinato de Leclerc. Nós estávamos lá(na figura de Lisa, plano subjetivo, ok?), para velar pelo Leclerc e pela integridade de Lisa, que o filme/ a vida ( moralista, naturalista?) se encarregaria de destruir.
Ele sacrifica Lisa no lugar do velho, ao final de seu percurso de desencanto, ao final do filme, porque já não estávamos lá ( não precisava mais de nós?). O que o plano não filma ( ou filma de forma equívoca) vale tanto quanto o que nele se representa: um plano subjetivo como o acima (valorativo: o que penso da cena) fazendo-se passar por neutro, amoral, não-valorativo. É esta troca o que define um plano, entre o expresso e o subentendido, ou entendido apenas anterior/posteriormente, cedo demais, tarde demais, ao longo do filme; ele contém o desenrolar do filme, ou o filme como desenrolar (geralmente, desenrolar de uma consciência, até voltar para si, no bom percurso do auto-desvelamento hegeliano. Ou até se perder/ser tragado definitiva e tragicamente pela inescrutável treva do Outro, que é o que acontece aqui). Mas há outra troca em jogo, ou substituição- também a ser desvelada ao longo do filme, ou da trajetória narrada por ele-, noção que todo rito sacrificial sempre conheceu: nós por ele, ele por nós. Ele em nosso lugar, Lisa em nosso lugar ( plano subjetivo versus plano documental, acima do que filma), Lisa sacrificada no lugar de Leclerc. É o caminho escolhido por Brisseau. Ficamos na mão: o rosto de Lisa Heredia, arredondado e melífluo como o de uma Virgem italiana, já a não a pode salvar, já não conta conosco ali para salvá-la, rogar por ela, como ela rogara por nós ( por Monsieur Leclerc, ao menos): la vie comme ça.


PS ( para mim): Hitchcock= transferência de culpa ( de algozes, entre). Brisseau: transferência de inocência(entre bodes expiatórios).

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