sexta-feira, 30 de julho de 2010

O cântico das criaturas



Em Rossellini, o franciscanismo redivivo: vinhetas, humor rústico e sensual, peregrinações do gesto monacal pela abóbada telúrica do Ser; no belo O cântico das criaturas, de Miguel Gomes, canto, encenação frontal e uma atenção igualmente lúdica ao gesto nos mostram uma versão um tanto diferente do espírito franciscano; uma abertura feérica ao mundo, onde as formas do visível são entrevistas segundo ângulos inusitados: o chiaroescuro que plana sobre o encarnado do Amor, olhos de bichos recortados pelo manto da noite, uma voz de criança dublando um lobo, afrescos em ocre e violáceo, debruados pelo ritmo hipnótico do apelo de Clara, no lusco-fusco entre o sono e a vigília: Irmão Francisco, não se lembra? Se em Rossellini, ser franciscano é cruzar o átrio da percepção em direção a um mergulho nas coisas- um acumpliciamento nupcial com estas-, em Miguel Gomes seguimos o caminho oposto: somos conduzidos das coisas, com suas convencionais figuras e conexões causais, em direção ao luxuriante nicho da percepção, cadinho alquímico onde o mundo acede à transfiguração. Em O cântico das criaturas, temos o silêncio, a treva e o arpejo do canto, cúmplices do Nada, cúmplices de Deus. Mas embalsamados por um adágio de artifício e voluptuosidade - suas texturas à la Tintoreto, a alternância entre encenação e uso das locações, nas duas partes do filme, a concentração mercurial na saturação das cores- que em nada ficam a dever às mais faustosas experiências pagãs.

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