sexta-feira, 30 de julho de 2010

Tam tam 2



1. Assim como em My hustler, Inauguration of the pleasure dome e Flaming creatures, em Tam tam a performance se apóia numa pose, numa certa duração e numa certa flexão , assumidas pelo corpo: um museu de cera. A estratégia básica , sobretudo em Anger, consiste numa reciclagem dos mitos da velha Hollywood, em que os corpos, pelo tratamento da luz, do close desfocado, de uma gesto estilizado ao extremo- segurar um cigarro como se fosse a última e mais singular atitude que jamais teriam-, e sobretudo da lentidão larvar com que estes gestos eram executados, imprimiam uma impassibilidade estatuária aos atores, transfigurados em ícones vivos. O Ivan o terrível do Eisenstein também conheceu esta representação icônica, só que não orientada pelo fetiche – mercadológico- do star; o mito em ação ali era outro: a tradição icônica Russa Ortodoxa, a fontalidade hierática do divino que se oferece/se doa em holocausto ao espectador, transformando-se em máscara mortuária, encimada pelo tableau-vivant, tradição igualmente bem aproveitada pelo culto stalinista à personalidade , aliás.
Mas no fundo os propósitos desta "fixidez" são idênticos, e eis uma característica típica do mito: dar a impressão de que uma obra ou um produto- o star Dietrich é um produto, Imperatriz vermelha é uma obra-, operados pela ação do homem, portanto móveis e passageiros(históricos, finitos), são eternos e imemoriais: que pareçam ser dons da Natureza, como as montanhas, o ciclo imperturbável de reprodução dos macacos prego e o fatal circuito da entropia. A imobilidade enervante dos deuses de mármore hollywoodianos emula o “Pague para entrar, reze para sair” da Natureza, esta eternamente velha nova roda gigante fantasmagórica, de onde ninguém sai vivo ou Outro.
2. Mas as poses de My hustler e Tam tam devem parecer, não “naturais”, mas casuais. Seus personagens não se “preparam” para as poses, como o star, eles são “flagrados”, e mesmo que este “flagrante” nos pareça mais do que suspeito, esta ambigüidade do “estar/não estar preparado” para ser fixado e iconizado pela câmera faz parte da duplicidade do jogo de espelhos em que todo performer se engaja: sou eu a caça ou o caçador, dirijo o olhar que se volta para mim ou sou dirigido, encenado por ele? Arrieta e Warhol não encenam ritos, como Anger .Eles captam estados, com maior ou menor cumplicidade das “forças da Natureza” ( D’Alessandro, Paquita Paquin) ou das relíquias pop ( Nico, Maud Molyneux) que filmam.

Em relação a esta descoordenação geral do espaço e do tempo que se exerce sobre eventos em essência banais, freqüentemente o cinema de Arrieta privilegia ações que sabemos que não levarão a lugar nenhum e reações que nunca podemos afirmar com certeza a que cor-respondem: o que lhe interessa, como a todo impressionista, é a teia dos efeitos, o registro do fogo-fátuo, que irisa a percepção de possíveis associações e a cognição de insights disléxicos , jamais totalmente desenvolvidos, apenas entrevistas ou sugeridas, em estado de latência; o seu cinema é um cinema de funambúlicos, de personagens semi-conservados no formol da apatia e do patético, já meio demi faisandés, esperando na coxia; de musica e drama pero sem um catalisador- ação, estrutura, raccord- que condense a equação em melodrama. Há melodramas em reserva, há farsas escandalosamente engraçadas em reserva também, à espreita, prontas para saírem da cartola, mas sabemos que jamais sairão, porque a Arrieta apaixona apenas aquele casulo semi-transparente de fascinação pelo inacabamento, pelo precário e pelo destroço - exerça-se este plástica ou dramáticamente-que é a fonte de encantamento do sonho, do ópio e da música de Satie.
No inacabado e na ruína da experiência se encontram os cristais de uma vida reservada ao imaginário, por-vir e por-esquecer, entre o Nada de ontem e o Nada do amanhã, unicamente minha , impossível de ser transmitida porque incompleta e alusiva, portanto sem um contexto de significação que nos possibilite compartilhá-la, torná-la social: torná-la presente, funcional, dialogal. Uma espécie de limbo, onde os desejos- narcisistas ou não, como é o caso freqüente das personagens de Tam tam, sempre encenando mitologias privadas que não chegam a se coagular em ritos por falta absoluta de devotos-espectadores que se interessem pela estrela do lado –permanecem naquele estado edênico ( e nem por isso ideal, muitas vezes pelo contrário) que caracteriza o autismo na criança, cápsula onde o feérico se enraíza , apodrece e geralmente acaba por ser esquecido como uma boneca no armário, ou um brinquedo velho da infância “de outro mundo”. Arrieta é um colecionador destes brinquedos e dessas bonecas, bijouterias, bibelots, autoramas quebrados, vestidos rotos, o inventariante da vida subtraída ao gregarismo e ao utilitarismo do mundo de todos os dias, do mundo sem segredos e sem mistérios que nenhuma criança jamais reconheceria como seu.

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