sexta-feira, 30 de julho de 2010

O beijo amargo 3




Ato 3: Cerimônia fúnebre

Dar o passo atrás equivale a um des-velamento da ficção, ou da receita que é preciso seguir para se transformar um documento, um fato bruto e um corpo nu em ficção, receita alquímica que equivale à metamorfose da pulsão no significado e da experiência na alegoria: a partir de que ponto do filme Kelly passa a ser uma personagem, e justamente a personagem (antagonista?) de uma fábula moralista, de um percurso pedagógico perverso, destinado à desilusão e ao desmascaramento, ao contrário dos Bildungsroman clássicos, que levam à fixação de uma máscara definitiva, à integração do indivíduo na cadeia das convenções sociais/culturais, um acolhimento do sujeito pela comunidade, mesmo que uma comunidade alternativa de artistas, como no final do Wilhelm Meister?

No plano dos créditos iniciais vemos como Kelly/Towers acede ao pacto da ficção, como ela se esmera em desempenhar bem o seu papel, embora não conheça as rubricas, embora as rubricas lhe sejam interditadas (mais adiante, antes de visitar sua futura senhoria, ela examina a máscara ainda uma vez diante do espelho, confirmando-se no papel. A senhoria, por sua vez, como boa coadjuvante, assina embaixo no contrato da verossimilhança: “Esta face no espelho é sua referência, Sra. Kelly”). É ali que ela se torna personagem, e nós espectadores. O prólogo - que tanto nos excita e tão pouco nos diz sobre este filme crepuscular - tem de ser esquecido, o prólogo só conta ao final do percurso, assim como a Morte só conta quando cicatrizada na Palavra. A cidade é o palco (a Via Crucis) de sua encenação íntima (esquizo ou ambidestra), na verdade, pública na medida em que sua, sua à medida em que pública: tornar-se uma pessoa pública equivale a cunhar uma efígie idólatra de si, a virar um fantasma e ao mesmo tempo fundir-se aos fantasmas coletivos, a ser tragada por eles). Mas se o filme – “o filme de ficção” chamado O Beijo Amargo - começa ali, no camarim da heroína, que está acabando de se arrumar... Se o classicismo se encerra ali, no começo do filme que está acabando de se arrumar... O fim de O Beijo Amargo, filme de Samuel Fuller, está na cena da descoberta do pedófilo: é aí que percebemos o blefe, a farsa, é ali que nos damos conta de que todos estavam encenando, ou blefando, de que a primeira parte de O Beijo Amargo (que vai dos créditos até o assassinato do marido) não era um filme de Samuel Fuller, mas um cromo destinado a ser o féretro do classicismo, o seu enterro derrisório, o seu penúltimo suspiro (o último não é um suspiro, mas uma cusparada, como em todo típico Fuller: as tamancadas na câmera do primeiro plano).

Antes desta revelação, porém, uma piscadela, o preâmbulo do que virá a seguir: na cena da canção com as crianças - em que o som nos parece a princípio não diegético, sua fonte invisível na cena -, a ciranda de closes nas crianças é interrompida pelo plano médio de uma menina, que observa fascinada o aparelho de som, finalmente mostrado para o espectador! Sinuosa e cúmplice, a câmera parece repousar sob o mesmo estado sonambúlico que envolve a criança, hipnotizada pela música e pelo enlevo da despedida de Kelly, que vai abandonar o hospital para se casar. Vemos uma mão pousada sobre o aparelho, concentrado e entrefechado centro de força, tamborilando sobre o cassete, seduzindo a criança, assim como fôramos seduzidos e fascinados, ao longo do filme, pelo ilusionismo fetichista das imagens projetadas de Veneza, pelo uso da música, pela gentileza e suavidade dos habitantes da cidade... A câmera se eleva para a esquerda, e o personagem que vemos é o marido de Ketty. É ele o demiurgo da cena (em grego, demiourgos não é o criador do mundo, mas o seu artífice, o que lhe confere uma forma: o encenador), o seu manipulador, seu prestidigitador, o senhor e o deus da cena, tanto quanto Fuller é o demiurgo do filme, o demiurgo que não ousa dizer o nome, certamente, pelo menos até... ( afinal, até que digam o contrário, tratava-se até ali de uma obra clássica, olhar auto-transparente e reconciliado sobre o mundo, sem Outro, sem máscaras, sem arte). Mas o aparelho de som pertence ao homem - assim como lhe pertence a encenação “não diegética”, não encenada que ele proporcionara -, vamos encontrá-lo novamente, assim como a menina, na casa do pedófilo. Ambos os “objetos” – a menina, o som - pertencem ao personagem, assim como os planos subjetivos que figuram Constance Towers como uma máquina de satisfação libidinal ambulante pertencem aos homens que a desejam. Fuller ou a mística da possessão no capitalismo tardio?


Nesta curta e decisiva passagem, percebemos o truque de que fôramos vítimas, presas do escrínio de fascinação construído por Fuller, assim como a criança fora presa deste signo de força pousado sobre o aparelho de som. Se estivermos vendo O Beijo Amargo em dvd, devemos nos obrigar, a partir deste ponto, a revisitar certas cenas chaves: a projeção das imagens de Veneza, a chegada de Kelly à cidade, o encontro com a cafetina, os flertes e acertos de contas com o policial, e a redescobrir e desvendar um filme cuja verdade se escamoteia nos interstícios - enfim, o fora de campo! -, na espreita irônica e desencantada que assinala o classicismo como uma experiência de destroços, de caduquice e engodo, de signos dispersos e arruinados que já não mais encontram um lugar (um sentido) na percepção e na obra, que já não tem como corresponder a um mundo: fim do campo como realidade total e única, fim de jogo, hora de recolher as cartadas, os truques e os tropos, e partir, como bem nos mostra Fuller no plano final...

É claro que, como todo fantasma, o classicismo deixa rastros, e no caso belas pegadas, pegadas de elegista e de perverso, daquele que cumpre luto e daquele que goza sempre après coup (ok, vamos falar como Freud: Nachträglichkeit), tarde demais, tarde demais: depois que o sujeito se dá conta de que é um fantoche, ora de mecanismos fatalistas, ora de projeções fetichistas da audiência, depois que o classicismo se dá conta de que existe, enfim, o fora de campo, de que sua estética não pode consumir/consumar o mundo, sem mais (existe o Outro, existe a Morte, etc, o que me implode e naufraga, assim como ao plano): Constance Towers “dublando” no hospital com as crianças a canção da reconciliação impossível, o embalo de uma polução clitoridiana ao som de Beethoven, e sobretudo este plano geral da despedida da cidade, este horizonte de fim de festa onde finalmente se inscreve, ao fim de um percurso de corrupção e desencanto, uma espécie de boa-nova: a reconquista dos grandes espaços, do deserto, a desterritorialização, direito defendido pelos personagens de Fuller até o paroxismo e a destruição, tenaz vindicação da Trieb que brilha no prólogo e no clímax em O Beijo Amargo, através/apesar dos biombos da domesticidade e da castração. O Evangelho de Fuller não é o de Paulo, a consolação do pastor e do congregador, mas o extravio do profeta, ovelha negra foragida; no primeiro, o hábil desvio da força em direção à obra, sua rarefação e sublimação; em Fuller, a implosão da obra pela força, a animosa e ensandecida retomada do pathos da Diferença, soterrado sob o determinismo (O Cão Branco), os labirintos da filiação (Underworld USA, Forty Guns), os revezes da História (Big Red One, Run of the Arrow, Verboten!), as estratégias da sobrevivência (Pickup on South Street, The Steel Helmet) ou o mito fundador (Run of the Arrow, I Shot Jesse James; uma superexposição do presente e uma revitalização nitroglicerínica do signo que só encontrou equivalência nos grandes místicos e pecadores, de Santa Tereza D’Ávila a Gilles de Rais, de São João da Cruz a Jean Genet e Céline, a demoníaca grandeza de quem assume os riscos de uma experiência dos limites.

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