sexta-feira, 30 de julho de 2010

Tam tam e o maneirismo 1

 
 
 
O travesti sempre interessou o cinema experimental, ao menos um cinema de performance: Warhol e sua musa Candy Darling, Maria Malibran de Schroeter, Jack Smith, Kenneth Anger. No corpo do travesti- ou antes: na idéia que este corpo figura- se atualiza o princípio da performance: uma imagem, um fetiche, uma associação do imaginário que se faz carne. A potência de metamorfose plástica e dramática do travestismo é o que fascina ao cinema da performance, seu lado camaleônico: ser o palco de uma metempsicose. Prsesenciamos o efeito de uma correspondência entre uma instância espectral- cosa mentale, como diria Da Vinci da pintura- e um substrato material, res extensa.
Trata-se da herança aqui de uma figura essencial ao maneirismo, a anamorfose. Há sempre, entre a imagem “ideada” e a sua presentificação nos limites de um corpo e nos escaninhos de um gesto, uma “distorção”, ou antes: uma refração. No “caminho entre” o pensamento e a matéria, a imagem necessariamente perde em rarefação e leveza, ganha em densidade, textura, ornamento, expressão. Em Piero della Francesca, por exemplo, a anamorfose é uma “deformação”, destinada a desmascarar os efeitos ilusionistas “realistas” da perspectiva. Ou seja: é um artifício destinado a desnudar um outro artifício, mas que se passa por natural, ou por verossímil, no caso a restituição no quadro da terceira dimensão, na busca da analogia com os objetos reais. Um novo artifício cuja função é desvelar o convencionalismo de um artifício cuja autoridade e legitimidade residem apenas na constância de seu uso.
Neste sentido, a anamorfose efetua uma perversão, tal como entendida por Deleuze: um desvio dos fins, uma inflexão imprimida à figura originária. Ela traz a marca de sua origem, ela é a princípio o seu reflexo- o princípio da perspectiva para Albrecht Dürer e Della Francesa, a mulher para o travesti- ,mas de uma origem transposta para outro meio, dirigida por outro telos, imantada por outra atmosfera; como bem diz Thoret, l’original n’a pas lieu, ele sofre uma mitificação/ desvirtuação que definitivamente interdita o acesso a qualquer coisa entendida como Origem, Modelo ou Idea, ao menos como entidades puras e ideais.
Tam tam é a ilustração magistral, é o caso desta regra. Estamos num mundo de travestis, compartilhamos sua intimidade, fruímos seu modo próprio e privado de encenar e de ser encenados por interações simultâneas entre a festa, a recitação e o trompe-l’oeil; travestis artistas, travestis que fazem/são teatro. Ora, trata-se de uma redundância, ou de uma metáfora ilegítima, que ocupa um lugar que não lhe pertence de direito: o corpo do travesti já é um palco, o travesti já é a figura derivada de uma figura originária ( a Mulher), a interpretação ou atualização alegórica de um ser anterior e exterior ( ma non troppo). Neste sentido, Tam tam é um filme transcendental do maneirismo, o filme que explora- que torna explícito- o seu princípio constitutivo, o Das Ding do Gegenstand, o ser coisa que faz da coisa o que a coisa é...

Mais sobre o filme quando eu o for digerindo...

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