sexta-feira, 30 de julho de 2010

La machine, Vecchiali

Se, em Femmes femmes, o teatro é o proscênio do cinema, em La machine é a televisão que toma seu lugar. No teatro se encena um julgamento - seu ponto de vista único é o atrabiliário instrumento de valoração de uma maioria: público, corte, Estado; mas a TV julga uma encenação: procedimentos clínicos e judiciários cuja função é a de nos convencer, metódica e monocórdicamente, de que Pierre Lentier, o assassino de crianças no filme, é a engrenagem motora, mas secundária, de um mecanismo desde sempre em ação, para aquém e para além do crime de Lentier: a representação.


Socialmente, perversamente- em família-, midiáticamente, tudo é representação. O pequeno retângulo da TV, através do qual vemos o desfilar das provas, ao longo de todo o filme, não é ( como no teatro e no cinema narrativo clássico), o substituto de nosso olhar, ou seja, de uma perspectiva, de uma posição individual; não há, a rigor, em La machine e no processo que o filme descreve, com exceção do assassino em julgamento. Explico: Lentier ocupa dois espaços, o da representação ( fotos, entrevistas vistas pela TV, manchetes de jornais), fotografado, grafado e inscrito, condenado de antemão; e o espaço dramático, com a filmagem em locações ou no confronto com os interrogadores; nas locações,


Ao final do filme, ficará claro de que não se trata de mais um histérico ou de um psicótico, e que aqueles movimentos sem função narrativa precisa pertenciam e caracterizavam de pleno direito um sujeito. É bom lembrar que a maior parte do filme nos é mostrado pela tela da TV, enquadrada num plano médio que permite ver o móvel sobre o qual esta se fixa. Lentier é a fresta- o olhar- pela qual temos acesso ao Desejo: no Grand finale discursivo que consagra o desequilíbrio”motor” e emocional que o personagem demonstrara durante o filme, confessa no tribunal que a menina, assim como outras, não fora forçada a entrar em seu carro, que o fizera de livre e espontânea vontade, para gozar ou se prostituir. É por isso que é condenado à pena de morte: nenhuma instituição- representação- suporta encarar a cicatriz do interdito, sobre a qual a Lei e o Direito se fundam.


E a cerimônia na qual é guilhotinado obedece aos mesmos princípios de encenação que presidiam, nas sociedades míticas, ao sacrifício de bodes expiatórios , geralmente crianças, o sangue inocente: um conjunto de autoridades- no sacrifício mítico, os sacerdotes; aqui, as autoridades legais e médicas-, enfileiradas em um cortejo hierático, cumprindo ainda os protocolos de unção do Poder: o beijo do padre, a impressão digital, o último cigarro. Mas a câmera de Vecchiali ronda, insubmissa, revoluteia, inspeciona a guilhotina, os passos do condenado; areja e rarefaz a cena draconiana do Poder. Como fizera, aliás, na terceira sequência do filme, aérea, bailarina e gratuitamente, voltejando em torno do bistrot onde dois amigos dançam, introdução inimaginável, feérica, démyana, à sucessão de petits tableaxus ( a tela da TV) estilo “documentos de barbárie, monumentos de cultura” que são a matéria do filme: La part maudite.




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