sexta-feira, 30 de julho de 2010

O Rio de ouro, Rocha



No final de O Rio de Ouro, vemos Isabel Ruth fantasiada de um demônio elisabetano contemplando os destroços de um cosmo arruinado pelo Fatum: canções de gesta para fantasmas, pressentimentos e vidências de dissolução, entr'actes líricos envenenados de decadentismo: a personagem torna-se uma espécie de relicário, para onde convergem as pulsões mortíferas, passadas e presentes, virtuais e reais, de todos os personagens, quadrinhas melodramáticas de um processo de decomposição mais vasto, sinfônico e sibilino, presidido por Eros e Thanatos, estes gêmeos bivitelinos do deus Acaso; um processo que dilacera os destinos- ou os recompõe- dos homens e dos astros, corpos igualmente submetidos à rotação de uma trajetória que intercala figuras do mito - os ritos: festa de São João, as canções - e hiatos vocais e gestuais que transformam os personagens e as cenas nas quais evoluem em bricolages de um demiurgo caprichoso e perverso, que se utiliza da argila destes compostos de pathos e delírios para imprimir sobre a transparência e o dourado de uma aquarela de Turner a rugosidade e o demoníaco mercurial dos monstros de Goya. Neste ensaio preciosista sobre uma Natureza encantada pelos demônios do recalque, Paulo Rocha mobiliza Jean Vigo e Charles Laughton no plano final para nos lembrar de que a ruína e a Morte são também uma forma de aconchego, tanto quanto canções de ninar ou os amores platônicos; o marasmo terno e vacilante que reconcilia os corpos-paisagens e os corpos-organismos. Aqui, porém, ao contrário de L'atalante, é Thanatos quem gera a reconciliação, a integração do martírio individual no amniótico acalanto do Olvido.

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