sexta-feira, 30 de julho de 2010

O beijo amargo 2




Ato 2: O Minotauro em seu labirinto.

O que Fuller, homem do presente fremente e turbulento, do Verbo feito Combustão, não perdoa são as boas intenções, aliadas da má-consciência: para Fuller ( e para Nietzsche),isto equivale a um mau uso do passado, visado como reduto do ressentimento, do passado credor e devedor. Fuller é o anti-classicista, quase por princípio: detesta o Era uma vez, a reconciliação, o encanto com as origens, a não ser que esta se traduza numa atualização/desvirtuação perversa, num tornar-se ato, novo ato fundador : O traidor e amante Bob Ford mata o mito Jesse James, O’Meara quase mata o Confederado, símbolo da América nortista, em Run of the arrow, Skip enterra Moe, e morre com Moe o romântico mundo da marginália, ao qual Skip não mais poderá retornar, pois seu compromisso com duas formas de poder, os espiões e a polícia, já o puseram a meio caminho, ora de um fim sórdido, ora da reintegração mundana, casado e castrado em sua potência de rapina, ao final de Pick up on South Street; o filho resolve vingar o pai morto, e para isto precisa matá-lo uma segunda e definitiva vez: tomar-lhe o lugar, encarnar o fantasma, e assim dissipar-lhe a memória, ao atualizá-lo, em Underworld USA. Ao que me lembre, apenas em um filme esta regra é quebrada: em Forty guns, o “filho” degenerado é corrigido/assassinado pelo pai simbólico, que ainda leva de bônus uma esposa que não pedira; em geral, “um filho” toma o lugar do pai e se torna o marco de uma vida e um mundo novos, a pedra sacrificial; a saga da diferença de que fala Lourcelles, diferença-usina de produção de ficções, os mundos substitutos para a Ausência do Pai, assassinado, traído ou emboscado numa cena originária. Cada personagem de Fuller parece recitar o credo de Gide, expresso em seu Édipo: “Ouvindo a lição do passado, só de ontem esperava o meu assim o seja, o meu ditado. Depois, de repente, partiu-se o fio. Brotado do desconhecido; já sem passado, já sem modelo, nada em que me apoiar; tudo a criar- pátria, antepassados... a inventar e descobrir. Ninguém com quem me parecer a não ser eu mesmo”. Não por acaso, o último filme de Fuller, Cão Branco, termina com um tiro mortal no inimigo por excelência da diferença: o determinismo.

A partir do momento em que Kelly lamenta seu passado, em que se arrepende e quer se redimir, ela está condenada a virar joguete do Mal, a dar continuidade ao circuito do ressentimento, e portanto de permanecer do lado do Pai e da Lei, de não traçar a trajetória de uma diferença, para fora e para além dos tentáculos do melodrama. O filme joga com este princípio a partir de dois movimentos sincrônicos:primeiro vemos a Kelly tigresa da abertura, que não se comporta como se pedisse desculpas ao mundo, virando uma heroína sulfurosa e enquadrada, etc. Depois, o inverso: a cumplicidade com o moralismo, a submissão ao joguinho sado-masoquista, vítima e culpado, vice-versa. Ao assassinar o marido, ela retoma o controle da situação, mas eis que a cidade intervém, tomando o lugar do marido, e a vitimiza/culpabiliza novamente. A chave para se entender esta oscilação perversa entre partners- entre cúmplices e carrascos de um mesmo jogo-, típica do sadomasoquismo, da ópera e da estética pulp, está no melodrama ( musica e drama), gênero démodé a que O beijo amargo pertence sem pleno direito. Fuller ou a pedagogia do agônico:“ Só o sadismo pode dar à estética do melodrama um fundamento na vida “( Proust).

Como bem entendeu Wagner, com seu conceito de arte total, não há pulsão ( não há ser, digamos tudo) sem expressão. Tudo é na medida em que se exprime ( ex-primir, ek-sistir), e isto antes de Berkeley e para além de Berkeley. Tudo o que aspira a ser- do mais baixo ao sublime, do cuspe ao Stabat Mater de Pergolesi - precisa ser expresso, traduzido em signo. Apoteose do expressionismo: O melodrama é este gênero onde tudo, dos detalhes mais sórdidos da comédia humana aos mais excelsos, ou supostamente tidos como tais, acede à glorificação na expressão, e geralmente sem o concurso/aura da alegoria. E acede cantando, engalanado e exaltante!, um Te Deum pela faculdade, unicamente reservada ao homem, de mostrar, falar e celebrar. A totalidade entendida por Wagner é a totalidade do que pode ser expresso; sentimentos excessivamente sutis, pouco “encarnáveis” ou materializáveis ou figuráveis, são deixados de fora. A grandiloqüência wagneriana é a forma de sublimar a baixeza, assim como se diz naquela piada jesuítica que quanto mais gritamos, mais os argumentos são fracos: Wagner não capta/ figura nenhum sentimento que não possa ser figurado, que não possa ser estilizado em musica e drama. Wagner jamais foi um impressionista, a mística do chiaroescuro e correspondências não são o seu forte. O melodrama é a lixeira do id, assim como do estilo: a tudo absorve e reflete, do incesto e pedofilia ao epigrama, do andante sostenuto à zoofilia ( Cão branco).

E Fuller, o que faz? Como disse Daney, sua tendência é tudo transformar em ficção, em imagem de (boa parte do gênio americano consiste nisso, aliás). Ou seja: levar tudo à expressão. Wagner contentou-se em elevar à expressão o que pode ser expresso ( oposições elementares e rasas, que nada dizem sobre os Tortuosos Abismos do Wille Zum Leben: Bem e Mal, Herói e Deuses, Virgem e Bacante). Fuller, como bom demagogo e sensacionalista ( o que Wagner também era, mas tinha menos recursos técnicos à sua disposição, menos auditório e extensão expressiva ; falando francamente: não tinha o cinema, como Fuller e Hitler), quer exprimir -tornar ficção, tornar espetáculo, gesto, figura, ação- inclusive o inexprimível, o infigurável. E o que é o inexprimível em O beijo amargo, assim como em toda obra de arte? Em toda obra, aliás, sobretudo classicista ( sim, pois é o classicismo que se expia aqui), a ferida que o classicismo sempre se esmerou em apagar? A la Morte, Sorella Moda, la signora di tutti. (Leopardi).


Sim, O beijo amargo é um filme sordidamente decadentista. Nem Visconti em Ludwig foi tão baixo e rasteiro, nem Soldati em Piccolo mondo antico ( talvez apenas outro tenha ido tão fundo na baixeza, e de forma tão obscena quanto: Rossen, com Lilith). Só um plebeu como Fuller para nos jogar na cara a pocilga do ocaso! Mas é decadentista de uma forma singular, ou num diâmetro singular: retrospectivamente decadentista, por refração. É um filme que passa a ser decadentista a partir de certo ponto, do ponto em que descobrimos a ruína da carne au vif: a cena ( cena primária invertida?) da descoberta do pedófilo. Precisamos rever o filme a partir daí, precisamos nos lambuzar com seu perfume de danação, reverter nossos códigos e transliterar seus espectros, dar o passo atrás, o passo em direção à origem - que só tem sentido se retomada após o ato final, a perda da Casa e do Pai, a liquidação da herança e conseqüente promulgação da subjetividade ou da conquista dos espaços vastos e ominosos, do deserto e do labirinto, Run of the arrow e Pick up on South Street, a conquista da Ficção, empreitada fulleriana por excelência; esta foi uma lição aprendida por Fuller, judeu e nixoniano, os Fords crepusculares, os Nicholas Ray juvenis e os alcoólatras, como Bitter victory, por Robert Kramer e todo bárbaro civilizado que se preze; e avacalhada por Brooks, Zinnemann, Peckinpah e todo bárbaro recalcado que se preze.
A seguir...

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