sexta-feira, 30 de julho de 2010

A miragem: o cinema de Jean Claude Guiguet 1





"O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: nada há, pois, de novo sob o sol."

A Bíblia na Versão do Rei James



“Para entenderem o que significa Presença em ontologia, pensem no significado da palavra portuguesa presente. Quando me entregam um presente, a pessoa que me deu este presente deseja estar ainda presente, quando eu o encontrar por acaso guardado no armário; assim, o filho por nascer, quando compro o enxoval, já é presente; e o filho morto, à medida em que o rememoro ou encontro uma carta sua, está, mais do que nunca, presente”.

Jesus Vazquez, meu professor de Ontologia.




...”essa ausência ou distanciamento do outro muitas vezes instaura a necessidade de reconstruir cenas ou figuras perdidas(...) exclamar é “estar tomado” pelo objeto epifânicamente”

Yudith Rosenbaum.



“Mais c’est magnifique. Tout ce que j’aime: pas de frontières!” Maria Tümmler em Le mirage.



“Quando ele aparece
Bonito e mudo se posta entre moitas de murici.
Faz alto-verão no corpo,
No tempo dilatado das resinas.
Como quem treina para ver Deus,
Olho a curva do lábio, a testa,
O nariz afrontoso.
Não se despede nunca.
Quando sai não vejo,
Extenuada por tamanha abundância:
Seus dedos com unhas, inacreditáveis! “( Adélia Prado, Memória amorosa)



“In fact, as Gilson has phrased it, in judgments of attribution “is” has correctly been chosen to serve as a copula “because all judgment of attribution are meant to say how a certain thing is.”.

John Wippel, The Metaphysical Thought of Thomas Aquinas.



"Les souffrances ne sont pas reconnues,
L’amour n’est pas appris
Et ce qui dans la mort nous éloigne
N’est pas dévoilé.
Seul le chant sur la terre
Consacre et maintient”
Sonetos a Orfeu, Rainer Maria Rilke


Mortalidade e epifania sempre “andaram juntas”. Sem a finitude - ou seja: os limites, da percepção, da ação, da predição-, não haveria nada de Alter e acima de nós e que, em sua presença fora do tempo e do espaço- nossos limites-, nos arrebatasse. Este é o núcleo do cinema de Jean Claude Guiguet, e Le mirage é o filme que talvez melhor exprima esta dolorosa dependência- antes: este ser contido em, como uma jóia é contida por um escrínio- do corpo agonizante pelo olhar vidente, da carne puída pela intuição transfigurada. Uma mulher está morrendo e, ao mesmo tempo ( diria até: em um único movimento, para ser fiel ao compasso ternário da articulação entre planos em Guiguet), descobre um grande amor; mas não há transição ou oposição entre estes estados.
Morte e amor são um acabamento, no sentido grego em que se enforma ( se dá limites) a um vaso, e assim este se erige em ser figurado: o acabar é o bem acabado. Ao morrer, somos doados a um Outro- a Natureza, ou a música, seu dístico de celebração, por exemplo, cujos papéis são preponderantes no cinema de Guiguet-, ou a um outro ser humano, que vela pela nossa desaparição como um amante vela pelo sono da amada- velar é guardar e manter em reserva, protegido das intempéries da durée. É por isso que, neste sentido, amar e morrer são intercambiáveis, pois ambos redundam numa transcendência de limites, numa plenitude: ”Maria ira jusqu’au bout”. Este ultrapassar em direção a é citado explicitamente no filme, pelo menos três vezes, na frase dita por Maria e posta em epígrafe neste texto e por sua filha, feita por Fabianne Fabe, quando revela à amiga de sua mãe que prefere não perspectivar o quadro, pois a obra sofreria assim uma limitação ( de ser?), ou na variação da ária do Suicídio da Gioconda de Ponchielle, tocada por exemplo quando Maria se depara com uma paisagem ou um estado de coisas ( a vista do lago, num travelling traseiro que se distancia lentamente, ou o casal nu na praia) que a chocam ou fulminam, por não estar no lugar da moça por exemplo, que a deixam fora de si , que a excluem, e assim, predizem sua morte; igualmente os travellings sobre a Natureza- à qual Maria se sente panteisticamente entregue- , travellings que, em sua dispersão estrábica, ora anunciam sua chegada ora registram sua partida, seu rastro: cedo demais, tarde demais.
Para Guiguet, um corpo humano e um corpo natural não se distinguem, não apenas na medida em que são votados ( votivos) ao desaparecimento mas sujeitos a processos semelhantes: são corpos que germinam outros corpos e neles se prolongam, que fecundam outras corpos, inclusive naturais e sonoros; a plenitude de nosso ser finito está nesta herança que os corpos mutuamente se legam, neste circuito recíproco e vertiginoso em que o Mesmo gera o Outro e o Outro acata o Mesmo, renovando-o: Abertura. Neste sentido, pode-se dizer que, para Guiuet, a Eternidade é possível, mas apenas nesta/como ronda de substituição de uns pelos outros ( a ciranda de encontros em Passageiros, Amor temporão e morte em Le mirage, proletário e alta-burguesia em Les belles manières, Patachou e amores casuais em Faubourg Saint-German). Como Metempsicose figurativa? E geralmente isto se dá sob o império do infinitesimal, do quase nada: impressões fugidias, silêncios, olhares enviesados, meias palavras, um embate sexual que é antes de tudo o enlace de um trop vide por um trop plein, de um nihil por uma plenitude material. Por que? Porque infinitamente pequeno, quase invisível e sorrateiro à percepção mundana. Porque todo encontro – e é disto que seu cinema é feito, de encontros- é o pontilhado de um Acaso e de uma violação –violação: de uma Possibilidade de ser por uma Atualização de ser, por um esbarrão, como disse acima, no ser amado ou no obstáculo odiado que eu idealizara, em delírio ou expectativa-,e nem o Acaso nem a violação ( ou seu entrechoque) se dão a perceber como figuras totais, abertas, precisas e ativas: são furtivos dons das sombras, do subentendido e do intempestivo. Guiguet pela boca de uma de suas personagens: "(...) São impressões que eu desejaria captar na Natureza. Mas uma paisagem não possui realmente formas. Uma paisagem possui um secreto e silencioso movimento”. Ser como gestação. E uma amiga fiel completa, em outra ocasião: “Com ela, um quadro nunca está acabado”. O contraplano em Guiguet é a cicatriz no mundo que os traços dos mortais – traços esmaecidos, alquebrados, inacabados, traços que carregam sua iminente desaparição, mas não como fardo, e sim como dom, segundo a lição de seu mestre Mozart- imprimem sobre o mundo ( e graças ao mundo): Nada de novo sob o Sol. ... mais no próximo post.

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