sexta-feira, 30 de julho de 2010

Memento mori



Sob o sol de Satã, a austera adaptação que Pialat dirigiu do infilmável romance de Bernanos, tem pelo menos uma cena de gênio: Sadrine Bonnaire, depois de transar com o amante, vaga pela sala, num plano médio; come uma fruta, desliza a mão pela mesa, por uma espingarda de caça pousada ali, como que por acaso... não, certamente por acaso. Também como que por acaso, a mão de Sandrine esposa o objeto mortífero; ela estaca, e subitamente se cristaliza no seu olhar, agora cabisbaixo e levemente estrábico, a idéia do crime; Mouchette agora empunha a arma, um troféu de caça: uma decisão a ilumina e nos paralisa; encaminha-se para o limiar da porta, o cano da arma voltado para cima, esbelta e ereta como uma ave de rapina que enfim encontra a presa, a ocasião e a ação que vão transformá-la em mulher... a elipse, figura essencial ao cinema de Pialat, aqui se traduz numa violenta pan para a esquerda, e a câmera se fixa diante do enfatuado marquês, amante de Mouchette, que veste um casaco diante do espelho. Ronda Mouchette em torno do plano, invisível e insidiosa; apenas o amante se sabe visado-mirado- por ela, pois já a perdemos de vista: fora de quadro, Mouchette transforma o plano em um stand de tiro, e o giro de 90 graus que a câmera de Pialat empreende, acompanhando o alvo- o marquês- em torno da sala consiste numa suspensão de todo e qualquer eixo fixo onde possamos nos postar, assumir um ponto de vista exterior, um julgamento sobre a ação... mas que ação? Sabemo-nos o alvo, sabemos que uma Mouchette armada e altiva se escamoteara no fora de quadro para se postar numa posição mais adequada, para melhor focar o coração da presa. Mas, ao contrário do marquês, que sabe ao menos para onde dirigir o olhar- e talvez se esquivar à investida do caçador, ou também ele se esquivar para fora do quadro?-, nós não sabemos de onde virá o golpe...que irrompe finalmente em nossa cara e no corpo do marquês, que o expulsa para fora do plano e da vida; mas a câmera , ao fim do giro, permanecera atrás da porta, à espreita, e finalmente nos fora dada uma posição segura, a de cúmplice ou a de confessor, daquele que estaca atrás da porta, e espera... como Mouchette dentro do cômodo, à espreita, à espera de que a vítima assome enfim no cadre da porta... saber, poder, estratégia, recuo, avanço, posição, manobras, trincheiras, ( a porta), emboscada, shot! Pialat transforma um interlúdio em stacatto entre dois amantes numa praça de guerra, versão de chambre da sucessão de batalhas que o padre vai empreender ao longo do filme, pelo Diabo ( que lhe proporciona o dom da Graça, inclusive o de realizar milagres) e contra o Diabo, a favor de um Deus tão rarefeito e rastejante quanto a luz que trabalha em ebúrneo baixo-relevo o corpo maciço de Dépardieu, perdendo-se na profundidade de campo e no lusco-fusco do campo e da Danação.



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