sexta-feira, 30 de julho de 2010

O beijo amargo: as pompas fúnebres do classicismo




“Au reste, que m’importe d’òu je viens? Moi, si cela avait pu dépendre ma volonté, j’aurais voulu être plutôt le fils de la femelle du requin, dont la faim est amie des tempêtes, et du tigre, à la cruauté reconnue: je ne serait pas si méchant. Vouz, qui me regardez, éloignez-vous de moi, car mon haleine exhale um souffle empoisonné. (...) il ne fault pas que les yeux soient témoins de la laideur que l’Être suprême, avec um sourire de haine puissante, a mise sur moi”.

Les chants de Maldoror, Lautréamont, Canto Primeiro.


"A casa, meus amigos, a casa!
Quem de nós jamais saberá desatar o enigmático nó de pedra?"

Alberto Savinio.


"Sometimes a conflict emerges between the desire for the image and the desire for the story which is, after all, in psychoanalytic terms, normal, since the first one expresses, beyond the codes of modernism, a specular fascination for the body (of the Mother), and the second, the return of the repressed narrative, and consequently the necessity to pay one’s debt to the Father."

—Bérénice Reynaud

Ato um: Ficções Literais.


A seqüência de abertura de O beijo amargo, que mostra Constance Towers engalfinhando-se com a câmera num plano que vai se revelar como subjetivo ( ela espanca o cafetão), mostra bem onde estamos: num ringue; num filme de Samuel Fuller. Mas o que se segue a esta entrada triunfal parece contradizer a fórmula esperada. Durante os créditos, um plano frontal de Towers, supostamente diante do espelho, nos mostra sua personagem se arrumando para entrar em cena, para representar um novo papel em uma nova vida, possivelmente num filme que mistura Peyton place com Roman spring of. Mrs. Stone ( pois Fuller só se interessa pelo pulp, a matéria espúria do visível, artefato anti-classicista por excelência, aquilo que pode sofrer um transbordamento ou gerar uma fulminação, jamais ser passado em branco ou integrado). A primeira parte de Beijo amargo, com seu ritmo compassado, regado a Ao luar e diálogos vaporosos, seus cromos à la Norman Rockwell, suas crianças aleijadas e canções miraculosas, é um andante hipnótico e feérico, onde a selva com a qual Fuller sempre identificou a América- uma teia eletrostática e labiríntica de choques histéricos e esbarrões sinérgicos-, se transforma num Éden grisâtre, espectral, não muito distante dos cartões-postais outonais, estriados de má-consciência, filmados por Delmer Daves em A summer place.

Mas há uma forma de filmar Constance Towers que assinala o veneno deste idílio: quando ela chega na cidadezinha, o que vemos de Kely é um close de suas pernas: ponto de vista de Griff, que a toma como amante; apresentada ao futuro marido, Grant, um insistente plano contraplano nos adverte que o que Grant deseja é este rosto-máscara, que Fuller filma com o halo ilusionista reservado aos closes dos vasos de Sévres eróticos dos anos 30, Garbo e Dietrich, um rosto sob a fachada do qual ele vai continuar, impunemente, a exercer sua tara. Kelly é isso: uma boneca de carne decomposta pelo desejo masculino em uma seqüência de objetos parciais/closes; A princípio, uma presa erótica, filigrana do recalque; na segunda parte, o marido vai usar a ex-prostituta, que serve a todos e a tudo, indiferenciadamente, como uma moeda de troca ( Nós somos iguais!) em uma engrenagem de hipocrisia e perversão, garantida pelo casamento: assim como nas peças de Genet, o rito da respeitabilidade é o duplo metafórico da abjeção, o que lhe dá alcance e projeção simbólica. Inversamente, a abjeção é o pathos secreto do ritual, a chama pulsional de sua vitalidade.

Mas Fuller, como bom primitivo, confunde sempre a palavra com a coisa, as pulsões com suas metáforas, o circuito imaginário e o material; ele literaliza tudo, todas as metáforas se tornam concretas, pulsam e sangram na tela. Assim, o tema do duplo em Casa de bambu se atualiza num carrossel de alternâncias de posição no cadre e de arquétipos na intriga, além de uma dualidade estilística: o filme noir , reduto do close, recurso estilístico tão apreciado por Fuller, é aqui filmado em cores, à distância, em longos planos seqüências ; um filme dentro do filme, cercado e vigiado por este, um olhar documental dirigido a um gênero eminente e explosivamente ficcional, a caça de gato e rato. Em Forty guns, o dualismo entre la béte et l’ange, como bem disse Moullet, é materializado em arroubos de violência advindos ora da cultura ( Forty guns é um de seus filmes mais sombrios, com suas ritualísticas encenações de assassinatos, verdadeiros tableaux elizabetanos caipiras) ora da Natureza, como na bela seqüência do redemoinho, expressão cósmica do amour fou de Bárbara Stanwick , não apenas pelo seu homem mas sobretudo pelo poder exercido sobre 40 belos garanhões e por uma terra sem lei. Em Shock corridor, as crises de esquizofrenia hebefrênica dos personagens, internos em um hospício, são emuladas pelos éclairs de uma montagem estridentemente expressionista ( América is mad!), além do uso recorrente de planos subjetivos dos pacientes. A própria intriga do filme ilustra esta necessidade de materialização – de espetacularização?- de tudo que está na arte de Fuller: um jornalista, para falar da loucura, precisa tornar-se louco- tornar-se o objeto de sua tese-, e nesta empreitada ultrapassa os limites cognitivos do sujeito e do objeto, da teoria e da experiência, e acaba por se queimar na aventura. A arte de Fuller reside nesta constante ultrapassagem, não apenas da metáfora em direção à matéria e à ação que a incandesce, como de tudo o mais: ultrapassagem dos roteiros medíocres e com freqüência confusos em diamantes de tensão centrífuga, do plano isolado pelo espasmo de violência que o estilhaça e expande em direção a perímetros mais amplos e vigorosos de força.

Fuller não apenas literaliza tudo mas, como bem disse Daney em seu texto sobre Big red one, ficcionaliza tudo, através da intensificação das sensações em detrimento da inanidade da linguagem de seus personagens. Através do uso terrorista de seu contraplano- o contraplano em Fuller fulmina: ele introduz a força como o núcleo desestabilizador e rizomático da cena, a bomba que vai propulsioná-la até seus limites, até o limiar da desintegração -, as palavras e os gestos funcionam como armas, que imantam a sequência com o fulgor de uma retórica incendiária, os palavrões da cadeia sintagmática: os tapas dados pelo apaixonado Widmark em Jean Simmons em Pick up, os violentos arrancos e investidas de Robert Ryan sobre suas vítimas em Casa de bambu, as reações dos alucinados em Shock Corridor; em O beijo amargo, temos esta découpage genial, que tenta emular o caráter taquigráfico e estertórico de uma manchete de capa do National Enquirer, na cena da “descoberta” de Towers de que o marido é um pedófilo: em três closes e um plano médio, o mundo Biblioteque Rose da primeira parte do filme desaba, e ficamos com o palco vazio, coberto de cacos. Apocalipse en migneur, versão doméstica deste fascínio pelo desastre e pela Queda que assombra o imaginário do cinema americano, de Intolerância ao decadentismo do filme noir, de Soberba a O Exército do extermínio. América ou os novos Arianos: “A idéia de uma catástrofe- quero dizer, uma catástrofe de verdade-, para os alemães, é tão arrebatadora quanto o era outrora a Revolução para os franceses” ( Paul Claudel). A seguir...

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