sexta-feira, 30 de julho de 2010

Miragens: o cinema de Guiguet 2




Seus personagens contraem núpcias com o mundo, mas o gênero de epifania que este “passe-partout” engendra se dá no entre-deux , no interstício de uma troca transferencial ( casa e jardim, enfermeira e paciente, sexo e ascese), um pouco à semelhança do que observamos nos filmes de Brisseau, em que outras modalidades de “encontro”, mais ou menos violentos e deflagradores, na ordem dos filmes, são a chave da descoberta do personagem por si e de outras dimensões, mundanas e intra-mundanas ( ou o intra-mundano que habita o mundano: a percepção do bicho, da flor e do místico são pontos de vista imanentes, sobre o nosso mesmo e único mundo, apenas em posições diferentes das nossas).
A beleza aqui decididamente não é simbólica, mera correspondência entre significante(corpo definhante) e significado ( morte iminente, ou transcendência.). Ela é, no máximo, alegórica: nos traços decaídos de uma mulher que sucumbe ao câncer e no ríctus dos que a sabem perdida e Outra, no limiar da Morte, se inscrusta a Beleza. Assim como no canto de Paul Celan, poeta romeno sobrevivente de campos de concentração, a poesia de Guiguet se nutre deste perfume fúnebre que embalsama a duração, porque a intui como a ponte entre o Nada de ontem e o Nada de amanhã; isto nos permite vislumbrá-la sob o limiar do Nec plus ultra!, que determina nossos limites no instante mesmo-e pela intercessão- da imagem que os ex-tasia, e nisso designa nossa morte:” (...) ll crie assombrissez les accents des violons-alorz vous montez en fumée dans les airs/alors vous avez une tombe au creux des nuages ( Fugue de mort, Paul Celan).

Fiat lux: a panorâmica que encerra Le mirage- e da qual Guiguet se orgulhava como sendo seu plano mais réussi- tem um valor literalmente de passagem: passagem da treva agonizante para a plenitude material do Mundo, que resiste e insiste ao nosso desamparo. E também de pegada , ou rastro ( a materialidade do cinema nos obriga a dar a toda interioridade um substrato material, e a adotar estas metáforas palenteológicas), na medida em que a panorâmica transporta o olhar entrefechado do morto- e dos que o “assistem”- para uma/mas nem tão outra dimensão, onde o morto, acolhido, mas sobretudo integrado às coisas do mundo, encontra uma estranha forma de sobrevivência, ao menos a reservada a nós pela arte mediúnica por excelência do cinema, máquina de presentificações; uma sobrevivência que Ovídio traduziu, talvez inadequadamente neste caso, como a metempsicose. Se bem me lembro, há um travelling dianteiro em direção à janela em Corps a coeur de Vecchiali, no momento da Morte/Tranfiguração de Surgère, e uma panorâmica que vai de Lisa Heredia, desamparada e envolta nas sombras, para a janela que dá para o jardim ( e para a vida) em Céline, dois filmes que igualmente presentam modalidades absolutamente imanentes de ascese por intercessão da Alteridade.

A transitividade- inscrita como uma fórmula encantatória e funesta no próprio título de um de seus filmes, Os passageiros; a diafaneidade do tom crespuscular de sua obra, crepúsculo que se nutre das coisas vistas e vividas, que consiste num olhar para trás, para a aurora das coisas que não apenas vimos e sentimos, mas que nos viram e sentiram passar, que foram nossas testemunhas ( há sempre um personagem em Guiguet que testemunha o drama, que o presencia sem tomar parte direta nele, o filho no Belles maniéres, a amiga em Le mirage, Patachou em Faubour saint-Germain, a viajante do trem em Os passageiros; além do mais, as paisagens tem um valor testemunhal sublinhado enfáticamente); grande parte de nossa vida, talvez a verdadeira vida, é anódina, solitária,afásica, passiva e na espera de ); a sobranceria e dignidade apaziguada de seus personagens, o quão eles resistem à decadência com um singular despojamento d’être- expresso, de forma quase ritualística, no impassível percurso final de Heléne Surgère, saindo da prisão, já ao final de seu primeiro filme, Les belles manières-; tudo isto me leva a considerar a obra de Guiguet sob a sugestão, tantas vezes reiterada mas jamais integralmente traduzida, pelo menos aqui no meu blog, dos insights que me parecem ter aprofundado mais decisivamente a hermenêutica da obra de arte no pensamento contemporâneo; as análises da obra de arte empreendidas por Heidegger e Benjamin : a obra de arte não é o marco de um mundo pleno e absoluto, no bastião de sues limites ativos. Ou não só apenas. A obra de arte é, antes de tudo, o monumento fúnebre ( ou a urna funerária) de um mundo caduco e irrecuperável: não apenas o que foi e já não é, mas o que poderia ter sido: "une seule nuit... Cela aurait eté si beau!". Trânsito tão mais rarefeito e esférico, cujos destroços o cinema de Jean Claude Guiguet tentou, percussiva, elegíaca, serena e outonalmente, recolher.


Nota:

A miragem a que o título se refere necessita uma curta introdução filosófica, ou algo parecido: não somos propriamente presenças definitivas e delimitadas, como mônadas leibnizianas, mas em relação: necessitamos ser vistos e vividos ( numa ampla acepção) para, em contrapartida, vermo-nos. Mas esta alteridade, sem a qual nada somos , não é exata ou primeiramente instaurada em uma pessoa; a Alteridade é o Tempo, que nos torna dessemelhantes a nós mesmos, e só ônticamente, digamos assim, secundáriamente, se presenta na forma de um ser: é estrutural, constitutiva. Assim, nunca reconhecemos nossa voz no gravador, quando a ouvimos, decorrido um certo tempo de gravada; ao experimentar uma roupa que julgamos ideal, esta depois nos parecerá ridícula, ao rever-mo-nos em casa, depois de certo tempo. Este ping pong refracional imprime à ex-sistência humana (ser fora de si, sempre em direção ao passado e ao futuro) uma aura fantasmagórica, uma miragem: não sou uma presença plena e definitiva porque não sou nada apenas se visto por mim mesmo; somente através de minha situação e repartição ao longo das várias dimensões de Alteridade ( como me vi ontem, como serei vista hoje, por quem serei lembrado amanhã), dispostas/discorridas nas linhas do tempo, somos. Enfim: O Ser miragem/mirare, fata morgana, descontínuo, estilhaço, rastro, destroço, titubeio, vagalhão, epifania: é deste Ser de que nos falam as églogas em prosa de Jean Claude Guiguet.

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